Por Leandro Manzoni
Investing.com - A expectativa no início de 2020 era de crescimento na economia brasileira, com os economistas consultados pelo Banco Central no primeiro Boletim Focus do ano prever expansão do PIB em 2,3%. No meio do caminho, houve uma pandemia e a exigência de medidas inovativas e criativas para que, no plano econômico, não fosse uma tragédia de proporções catastróficas.
E a condução heterodoxa da política econômica foi a regra em vários países, inclusive no Brasil, onde foi “impecável”, nas palavras do economista Luis Paulo Rosenberg em entrevista ao Investing.com Brasil na última quarta-feira.
Rosenberg, que atuou no setor público como assessor do ministro da Fazenda Delfim Netto e do presidente José Sarney (1985-1990) e com carreira no setor privado como consultor na Rosenberg, destacou as medidas relacionadas ao gasto público para atenuar a “queda brutal da demanda privada” por causa das medidas de isolamento social para conter o contágio de Covid-19.
“A trajetória de austeridade fiscal permanece no espírito do governo, que simplesmente adiou uma postura mais austera”, afirma o economista, que também elogia os cortes da taxa Selic para 2% ao ano e as atuações do ministro da Economia Paulo Guedes, do presidente do Banco Central Roberto Campos Neto e do Congresso, embora critique o presidente Jair Bolsonaro.
Rosenberg critica o excesso de preocupação com a alta localizada de preços, manifesta no mercado de juros futuros, mas que não deveria intervir na condução da política monetária. Inclusive, não descarta a possibilidade de um IGP-M negativo no próximo ano.
Além disso, defende a adoção de agenda que regulamente as prioridades dos gastos públicos para a população mais vulnerável e cita a necessidade progressividade no sistema tributário brasileiro, embora essa seja uma decisão resultante da dinâmica entre o governo federal e o Congresso, com risco de uma aprovação da CPMF.
Confira abaixo a primeira parte da entrevista com Rosenberg.
Investing.com Brasil: Como o senhor define, de uma maneira mais ampla, esse ano de 2020? Levando em consideração que havia a perspectiva de crescimento no início do ano para a economia brasileira e a posterior deterioração com a pandemia a partir de março.
Luís Paulo Rosenberg: Foi um ano realmente desperdiçado. A perspectiva no começo do ano, principalmente depois que o presidente [Jair Bolsonaro] assumiu uma atitude mais presidencial, se aproximando do Supremo [Tribunal Federal – STF], do Parlamento, era de um bom crescimento, sem pressão inflacionária, com avanços de legislação no Congresso e sem ser perturbado por algo indesejável vindo do resto do mundo.
A pandemia foi uma tragédia do ponto de vista humano! É inconcebível que, no século XXI, o mundo todo seja pego desprevenido, apesar de o Bill Gates estar anunciando isso há mais de 5 anos. Mas, como economista, só posso salientar a eficácia com que os governos do mundo todo se mobilizaram.
O que seria uma tragédia com proporções catastróficas se limitou mais ao pior momento econômico que passamos. Isso não é pouco!
[A situação] requereu uma heterodoxia em todo o mundo na qual havia dúvidas de que fosse possível, principalmente nos EUA, onde tinha um presidente totalmente irresponsável. O momento exigia medidas inovativas, criativas, ousadas, e arriscadas em certo sentido. E o bonito é que isso foi adotado em todos os países.
Inclusive no Brasil, onde teve uma resposta de política econômica simplesmente impecável, tanto do Banco Central quanto do lado do gasto público, em que a dobradinha Parlamento-Executivo funcionou muito bem, conseguindo circunscrever o mal, do ponto de vista econômico, em algo muito menos lesivo do que poderia ter sido.
Inv.com: Quais medidas foram fundamentais para que a queda do PIB, da atividade econômica fosse atenuada?
Rosenberg: Acho que a medida mais essencial foi a postura perante o gasto público, pela seguinte razão: existe no Brasil, principalmente pelos desacertos do governo Dilma (2011-2016), uma preocupação muito grande com a questão fiscal, a tal ponto que desde o governo Temer (2016-2019) havia uma trajetória de redução de déficit fiscal, uma política elogiada por todos os economistas.
Com a crise, o [atual] governo teve que fazer uma opção muito difícil. Rompendo essa trajetória, ele encontraria uma resistência não somente de alas conservadoras, mas mesmo do próprio mercado financeiro, que ficaria na dúvida se seria um instante ou uma volta ao populismo.
LEIA MAIS: Incerteza com programas sociais é maior ameaça à dívida pública, dizem analistas
Considerando o caráter conservador do governo, o receio maior era que ele fizesse a opção simplista de manutenção de política fiscal, o que seria realmente uma catástrofe. O auxílio emergencial de R$ 600 mensais foi uma medida extremamente corajosa, avessa ao que eles [equipe econômica] acreditam como política normal.
Em seguida, mais ao final do ano, houve um aumento de preços de commodities gerado por juros negativos no mundo inteiro e pela recuperação rápida da China - que em questão de 4, 5 meses reassumiu o papel de transformador de commodities em produtos industriais de qualidade. Se o Banco Central tivesse se comportado como no passado, sob o dogma de que juros altos não fazem mal a ninguém, poderíamos estar em uma crise extremamente severa.
Na verdade, persistiu a compreensão correta de que é uma subida do índice de preço, e não de inflação, que está acontecendo. Se há claramente um acidente de oferta, um grupo de preços que sobe rapidamente, está havendo na economia uma mudança de preços relativos, e quem estiver ligado à posse e produção desses bens vai ter um ganho e o resto da sociedade perde, seja consumidor seja usuários desses insumos.
E o Banco Central é ensinado pela bibliografia a se abster de qualquer ação em um cenário como esse. É manter a taxa Selic em 2% e teve a coragem de fazer isso. Por isso, considero impecável o desempenho governamental.
Inv.com: Sobre as consequências dessas medidas: por um lado houve uma retomada na indústria, na construção civil e no varejo, mas ao mesmo tempo trouxe elevação do preço dos alimentos e a disparada do dólar, com risco de repasse cambial no índice de preços. Gostaria que o senhor avaliasse, na posição de gestor de política econômica, como se faz esse tipo de balanço? Vai ponderar mais para o crescimento ou para os índices de inflação?
Rosenberg: Primeiro, vamos fazer uma diferenciação entre índice de preço e inflação. Mesmo se tem aumento localizado de preços, do índice - que é triste que tenha ocorrido -, não se deve modificar a política econômica.
Segundo, a fixação de que toda vez que tem aumento de alguns preços, ou do dólar, vai gerar um processo inflacionário é uma psicose nacional, haja visto que no mundo inteiro o preço de commodities subiu e não há inflação em nenhum lugar do mundo.
VEJA TAMBÉM: Brasil, Turquia e Índia: subir ou não subir a taxa de juros, eis a questão
É muito mais um terror que existe no Brasil pelo nosso passado inflacionário do que realmente alguma relação macroeconômica. Imagine o que seria do capitalismo se toda vez que uma retomada de crescimento tivesse inflação? Provavelmente o muro de Berlim teria caído para o outro lado e o socialismo teria vencido a batalha.
Nesse cenário, não tem motivo para acreditar que o déficit [fiscal] gerado em 2020 seja gerador de inflação, ainda mais que a queda brutal de demanda privada foi compensada parcialmente pelo gasto público.
Claro, se o governo pressionar a demanda agregada quando o setor privado voltar, aí haverá o problema.
Mas, no Brasil, o terror com inflação é tão alto que se manifesta nos mercados futuros de juros, onde está dando de barato que a inflação está aí.
Há grandes instituições financeiras projetando a taxa Selic em 2021 acima de 4%, quando na minha opinião o mais provável é que terminemos ano que vem com a taxa em 2%. Sabemos o que é natural no movimento do preço por atacado, ele vai e se não tem o mecanismo de repasse, ele volta. É possível até que se tenha um IGP-M negativo em 2021, o que seria absolutamente normal.
Por que estou nessa peculariedade? O que fazia do Brasil um país onde inexoravelmente qualquer preço aumento de preço significativo se perpetuasse, se transformasse em surto inflacionário, era o sistema de indexação que havia na economia. Existia um automatismo nos reajustes do câmbio, dos juros, dos salários, dos aluguéis. Isso não existe mais.
Acho que haverá mais algumas semanas com esse temor e depois vai se recompor.
Agora, a trajetória pós-Dilma de austeridade fiscal permanece no espírito do governo, que simplesmente adiou uma postura mais austera, mas vai ser retomada. Parte da continuidade disso se deve a dois fatores: 1) no meio da crise não há muita preocupação com o day after, o presente é muito dramático e precisa ser atacado; 2) houve o período eleitoral, quando o bom senso manda não criar um fato desfavorável.
Mesmo sendo eleição municipal, as implicações são óbvias. Uma medida que permitisse ao [Guilherme] Boulos [candidato derrotado à prefeitura de São Paulo] alegar que esse governo é fascista, que quer prejudicar o trabalhador, é suficiente para eleger um prefeito de esquerda, nascer um candidato forte a governador de São Paulo, que comporia uma força de oposição robusta contra um candidato mais liberal.
Percebo muita irritação com o Paulo Guedes. Calma! Guedes é um economista absolutamente familiarizado com a operação da economia de governo, é um homem que não leva desaforo, se ele sentisse que não há condição de implementar uma modernização da economia brasileira, já estaria no Rio de Janeiro ganhando dinheiro, o que ele sabe fazer muito bem.
O que ele fez foi ter a maturidade política de entender que é um momento de espera e vamos ver um novo relacionamento governo-Parlamento após as eleições.
Inv.com: Nessa nova relação Congresso-Executivo, como a agenda liberal, de reformas, será retomada e será inserida com o desejo do governo de criar um novo programa de transferência de renda, respeitando o teto de gasto ou uma outra regra fiscal que não prejudique a taxa de juros?
SAIBA MAIS: Bolsonaro afirma que não é possível perpetuar auxílio emergencial
Rosenberg: Vamos falar um pouco sobre o teto, que é uma jabuticaba brasileira, pois nenhum país sério faz uma emenda constitucional limitando a taxa de crescimento do gasto público sem escrever uma linha de como isso vai ser feito. Foi isso o que foi feito.
Como era um momento em que se demandava, especialmente pelo mercado financeiro, uma manifestação explícita de compromisso com a austeridade, se aprovou essa regra.
Claro que, se surgisse uma situação como foi a da pandemia, esse teto perde o sentido. O gasto público em si não é nocivo nem virtuoso, depende da sua circunstância. Se há um momento pujante no setor privado, seria loucura injetar gasto.
Qual é a solução? Primeiro, deve-se fazer algo como um imposto de renda negativo, que é a tese do [Milton] Friedman: não há nada mais eficiente que o capitalismo para alocar recurso.
Mas, quando se estuda isso no doutorado, o teorema seguinte demonstra se não sair com uma distribuição correta no começo, vai agravar a concentração. Nesta situação que vem a proposta do Friedman: um imposto de renda de quem está no alto paga uma compensação para quem está marginalizado nesse mercado até conseguir uma equalização mais justa da renda.
Buscar isso, qualquer economista da escola de Chicago vai tentar fazer, é meritório, principalmente em um país como o nosso, em que há tributação desde os produtos básicos, enquanto o dono de escritórios de economia, de finanças, de advocacia se pagar uma média de 10-12% da renda como imposto de renda é muito. Em qualquer país civilizado isso vai a 50-60%.
Eu não tenho dúvida que tem um espaço para uma ação modernizante. Sabemos dizer para o tomador de decisão quais são as implicações da ação que ele vai tomar. Agora, o que vai ser feito, quem vai se beneficiar, quem vai perder, é algo que a democracia exige que nasça desse diálogo entre o Parlamento e o Executivo. E o ministro da Fazenda está lá para dizer ao presidente o custo de uma ação.
E o presidente pode responder se o custo está ok, vai enfatizar as pressões que existem no momento, apontar caminhos, se compensa, perguntará sobre medidas para minimizar um desgaste. E é isso que eu vejo acontecer.
Não sei se vai sair um aumento de imposto de renda sobre dividendos, por exemplo, sobre lucros acima de um determinado patamar, uma progressividade maior da tabela, que é o mais desejável tecnicamente, ou vai ser a CPMF, que é um desastre total. A CPMF é a comprovação de "todo problema complicado tem uma solução simples e errada".
Se no frigir dos ovos existe a necessidade de fazer um gasto, ao mesmo tempo existe uma necessidade de mostrar a volta da trajetória de um equilíbrio fiscal, que venha a CPMF se essa é a solução política viável, com todos os seus malefícios. Se a ameaça da perda de controle fiscal for algo grandioso, pagamos esse preço.
Devemos ter a humildade de ver essa relação entre Executivo-Parlamento sendo fixada e entender o que vier é o melhor possível politicamente.
O bom é que temos um Parlamento diferente do que tínhamos no passado. Essa última eleição, além de ter uma alta taxa de renovação, proporcionou a entrada de 30-40 deputados de altíssimo nível. E nunca tivemos um presidente [da Câmara dos Deputados] tão racional como o [Rodrigo] Maia (DEM-RJ), o que transmite uma expectativa favorável.
Acompanho governo dentro ou fora há mais de 50 anos. Nunca tinha visto uma iniciativa de tamanha dramaticidade como a reforma da Previdência nascer dentro do Parlamento. A gente considerava um grande Parlamento aquele que aprova uma proposta bem conduzida pelo Executivo.
A da Previdência nasceu lá dentro. Isso é muito bonito, é uma comprovação de maturidade política que o Brasil não tinha.
LEIA MAIS: Equipe econômica atrasou Reforma da Previdência, diz cientista político
O que estou tentando transmitir é o seguinte: nosso presidente fala tanto besteira, se alinha com causas tão absurdas, que afeta o que tem no plano político e econômico. O número de editoriais e colunas que tem contra ele absorvem a capacidade de comunicação na qual esse tipo de mensagem teria que ser transmitida.
Mas, não vejo nada de catástrófico na condução da política econômica, estamos passando por um período brilhante. Há uma administração de Banco Central espetacular!
Esse país viveu sob a sina dos juros altos pelo menos desde o Plano Real. De repente, vem um grupo de conservadores, bem treinados, PhDs de primeira, e diz: “Calma, gente! No mundo inteiro, no overnight, tem que render taxa zero ou negativa, não remunerar com duplo dígito que fica parado. Vá aplicar, investir na bolsa”.
Estamos, sem perceber, modernizando a economia, nos acostumamos com um novo padrão de gestão da política econômica que nós vamos colher no ano que vem.
Inv.com: O senhor mencionou medidas para a arrecadação em busca do equilíbrio fiscal. Como o senhor avalia as medidas da PEC Emergencial e do Pacto Federativo para disciplinar o gasto público? É uma forma de aprimorar o mecanismo do Teto de Gastos?
Rosenberg: Sem dúvida, acho que isso é governar! Uma coisa que irrita os economistas liberais são essas vinculações orçamentárias, que é a coisa mais anti-democrática que existe.
No fundo, transforma o poder do Parlamento que foi ungido pelo voto numa regra fixada em um momento em que as prioridades eram outras que as atuais. Os movimentos nessa direção são absolutamente corretos.
Se você me perguntar o que é melhor: fazer um bom programa de rede de sustentação por segmentos mais vulneráveis da sociedade ou continuar depois de 70 anos subsidiando a indústria automobilística, respondo como cidadão, mas a lógica econômica se percebe. Há um espaço para parar de gastar erroneamente e cuidar dessa prioridade, é muito sadio começar a questionar esse tipo de coisa.