Se você está no mercado financeiro há algum tempo ou se ao menos passou por um período de distribuição de bônus em sua empresa (quando ninguém fica feliz), já deve ter entendido: algumas coisas são inefáveis. Os limites da linguagem não podem ser muito bem demarcados ou definidos, por definição, mas estão por aí. Wittgenstein morreu em 1951.
Melhor nem expressar em palavras a abrangência da crueldade humana. Aquela famosa frase: “eu não tenho coragem de dizer para minha mãe que trabalho no mercado financeiro; felizmente, ela acha que eu toco piano num bordel.”
Quando algumas coisas não podem ser ditas direta e explicitamente, cria-se uma linguagem própria. Um “sim" pode representar “não" com frequência. Elogios são colocados com verniz para aquilo que posteriormente será falado: a crítica devida. Em outras situações, aparecem os eufemismos. Usamos uma palavra bonita, de preferência em inglês e extraída de algum manual básico de MBA Talking, para esconder nossas sombras.
Assimetria, por exemplo, é o termo usado pelos investidores quando não há mais outro caminho possível. Esgotaram-se todos os demais argumentos razoáveis de previsibilidade. Não há mais conforto no valuation, a empresa não dá mais lucros suficientes nem rentabiliza seus ativos. “Ah, mas é assimétrico.” Do zero realmente não passa (se você não estiver alavancado, claro). Nunca subestime o downside. Os movimentos costumam ser mais intensos do que sugerem nossas mentes lineares e nossos vieses de confirmação.
Sociedade é a palavra que inventaram para descrever de forma elegante a imposição das vontades do controlador sobre os demais fingindo consensos. Os súditos atuam para mostrar que concordam com a vontade do rei, que, por sua vez, finge acreditar. Todos entram no gamification, ilíquidos, amarrados, mas loucos para comprar mais, em especial mais que o coleguinha. É a revolução Gramsciniana corporativa. Toma-se a estrutura de poder por dentro, sob o apoio dos livros de gestão para impor a vontade monocrática travestida de democracia ou modelo horizontal. Quem terá coragem de avisar que o rei está nu?
“Aprendi com os erros do ano passado” é a expressão falso-humilde para mostrar que você, do alto da sua autocrítica, é capaz de identificar seus equívocos. Mas eles estão no passado, claro. Você é tão perfeito que, além de tudo, é modesto. Agora, com os erros pretéritos, está pronto para só acertar dali em diante. Seu modelo errou tudo no ano passado, mas agora você vai atualizar as premissas e acertar pra frente. Não seria o caso de jogar o modelo fora?
Groupthinking pretende descrever os erros de pensar conforme a imposição social do grupo, ceder a consensos estabelecidos, ainda que equivocados. “Melhor errar com todo mundo do que acertar sozinho.” O próprio uso da expressão, no entanto, já o coloca acima dos demais membros do grupo, como se seu apontamento lhe conferisse a superioridade de identificar o erro alheio e as suas próprias virtudes. Além disso, no fundo, convenções, rituais, tradições e liturgias são, em grande medida, resultado de groupthinking. A religião é talvez o maior exemplo dele e todos parecem estar de acordo com ela e seus livros místicos. Resumo: quando é no caso do outro, se trata de groupthinking. Quando é você, refere-se a uma adesão ao consenso, que sintetiza a fronteira do conhecimento científico e a beleza do Teorema do Limite Central.
“Pelo seu próprio bem, eu decidi…” normalmente empregado a um subordinado ou um par na profissão. O máximo da arrogância travestido de benevolência. “Sou capaz de decidir melhor do que você sobre você mesmo.” Olha, quando for a minha vez, eu prefiro que você decida pensando no meu mal. Para casos do meu bem, talvez seja melhor eu mesmo decidir. A proposta coletivista de pensar no outro costuma traduzir, no fundo, a vontade de sobressair-se sobre ele ou esconder que, na real, você fez mesmo pra ferrar o amiguinho. Claro que não vai ter coragem de dizer isso na frente dele, ainda que o camarada também seja um crápula e mereça.
“Na pior das hipóteses, serve como um bom hedge”: tenta exprimir uma decisão em prol da diversificação e da multiplicidade de fatores de risco em sua carteira, mas costuma mesmo representar uma completa ignorância sobre o que está sendo comprado. “Eu não faço ideia pra onde isso vai, mas, como gosto do ativo e ele não se parece muito com o resto, vou enfiar ele aqui."
“..., disse uma vez Warren Buffett”: essa é clássica. Quero provar um ponto mas não tenho bons argumentos pra isso. Então, empresto um argumento de autoridade para parecer inteligente e estudioso. Regra básica de uma argumentação sobre finanças: citou o Buffett, perdeu.
“Eu não olho o macro” ou “só faço bottom up”. Também é no fundo uma tentativa de tropicalização de Buffett. Esquecemos de três pequenas nuances: i) a economia norte-americana, no geral, funciona, de tal modo que você não precisa mesmo se preocupar muito com o macro em horizontes de tempo dilatados (o S&P 500 sobe em média 8% em dólar há mais de século; seria razoável supor algo minimamente parecido pra frente); ii) a alavancagem e a sólida posição do balanço das seguradoras e resseguradoras de Buffett lhe confere uma vantagem importante – se você tentar se alavancar no Brasil, diante do paraíso do maratonista implacável CDI, as chances de dar errado são enormes; e iii) na hora de modelar a sua empresa, o que entra no DCF na hora de preencher o custo de capital, o câmbio a que será importado o insumo, o crescimento esperado do PIB, a inflação da mão de obra pressionando o G&A? Você não olha o macro, mas depende de premissas macro pra chegar a conclusões micro. Acho que chegamos num paradoxo.
“Está barato sob uma perspectiva de longo prazo”. Traduzindo: comprei e estou perdendo dinheiro. Provavelmente, continuarei perdendo dinheiro, mas me comprometi, mental ou publicamente, com a posição. Sempre é difícil cortar na própria carne. Caro ou barato não é um critério temporal. É uma avaliação contínua entre preço e valor intrínseco. E, sim, pode demorar para essas duas coisas convergirem. O value investing tradicional não faz afirmações sobre quanto tempo vai levar para a materialização da tese de investimento. “Nossa, mas é um instrumental pobre, então.” Pode até ser, mas é o melhor que temos. Bolas de cristal, búzios ou outro método charlatão preferido são ainda piores.
“Meritocracia" deveria contemplar: condições de partida equivalentes, julgamento da atitude ou da estratégia no momento de sua decisão, olhando para a distribuição de probabilidade de ocorrência de eventos à frente e o processo limpo de fatores exógenos e aleatoriedade, mas, na prática, só é medida pelo resultado obtido, ainda que ele tenha sido derivado exclusivamente da sorte e das condições externas. Convidar o gestor do fundo de melhor performance do ano passado para opinar sobre 2023 equivale a perguntar para o ganhador da Mega da Virada em quais números devo apostar para o próximo final de semana.
“Vale o teste” costuma ser a resposta corporativa adotada para demonstrar como a cultura do lugar valoriza a tentativa e erro. Só da experimentação podem surgir iniciativas capazes de escalar o negócio e torná-lo exponencial. Na prática, contudo, a expressão quer dizer: “achei sua ideia péssima, mas não quero inibir uma próxima tentativa e a experimentação. Prefiro deixar você tentar essa porcaria do que frear sua proatividade, ainda que você tenha mandado muito mal desta vez.”
“A Bolsa brasileira morreu”. Se pararmos pra pensar, é uma variação do “a renda fixa morreu”, de 2020. A economia e os mercados são cíclicos. Pode soar contraintuitivo, mas normalmente se ganha dinheiro operando o contrário dessa frase. Bolsa você compra quando o juro está alto, todos estão na renda fixa e as ações estão baratas. O juro é um instrumento de política monetária, que, por sua vez, existe para suavizar os ciclos. Ou seja, seu comportamento tem elementos inerentemente de curto prazo. Logo o juro cai, os múltiplos precisam se expandir e os lucros também, com a recuperação da economia e a queda da despesa financeira. É um efeito duplo em prol da valorização das ações.
Antes de encerrar, para não dizer que não falei das flores… duas ideias de posicionamento tático:
- O mundo emite sinais, ao menos na margem, de que podemos ficar um pouco mais otimistas. A inflação na Europa desacelera em ritmo superior ao esperado, os ganhos por hora trabalhada nos EUA estão mais bem comportados e a China caminha, objetivamente, para uma abertura mais ampla. Os mercados de ações na China ainda se mostram muito preocupados com os casos de Covid-19, o que é legítimo. No entanto, a experiência ocidental mostra como, depois de três meses, essas coisas se acomodam. Depois de muito tempo, pode ser uma chance de comprar China, no que seria, inclusive, um bom vento favorável para todos os mercados emergentes.
- As coisas começaram muito mal para o novo governo, com sinalizações de desrespeito à aritmética básica das contas públicas e de rompimento com uma frente ampla de centro. Também começaram muito mal para Fernando Haddad, que foi atropelado na questão dos impostos federais sobre combustíveis. Mas, como sabemos, Lula é macunaímico e dificilmente estimularia a fritura de seu ministro aos cinco minutos do primeiro tempo. Nessas idas e vindas, Haddad, que subitamente virou uma referência técnica entre os ministros (tudo é uma questão relativa!), poderia ser agora prestigiado. Caminharíamos agora na direção de sinais em prol de alguma austeridade fiscal. Checks and balances funcionando. Pode ser uma janela em prol do kit Brasil: venda de dólar e juro, compra de Bolsa.