Quando surgiram os criptoativos, houve muita desconfiança sobre a tecnologia. Com altos retornos, leigos – e economistas não exatamente interessados – acusavam o Bitcoin de ser um esquema Ponzi (a famosa pirâmide). Com o tempo e com a ação de divulgadores científicos estudiosos do tema, o Bitcoin e sua estrutura de blockchain foram ganhando a atenção e confiança do público. Houve uma explosão de elogios à tecnologia: segura, disruptiva, única.
Um elogio menos frequente, mas no núcleo de muitas propostas de uso da blockchain é “transparente”. Na perspectiva de usos públicos de lockchains, uma das grandes potencialidades das blockchains está em sua extrema transparência, no entanto. Com essa nova e confiável estrutura tecnológica, conflitos seriam dirimidos pela irreversibilidade dos dados lá inseridos. Há maiores possibilidades de confiança social florescer nesses contextos, sendo esse um argumento usado por otimistas a respeito das transformações sociais causadas por criptoativos.
Entretanto, esquecem-se de que há toda uma estrutura de incentivos que suporta uma blockchain. Para a transparência valer de algo, o que é transparente deve ser confiável em si. Uma mentira escrita numa blockchain não se torna menos mentira. Eu posso escrever numa blockchain que “o Brasil ganhou a Copa de 2010”, porém qualquer brasileiro confirmaria que essa informação é falsa. Particularmente, a mentira na blockchain se torna mais explícita e, no que se trata de smart contracts, algumas que deveriam ser ocultas se tornam mais perceptíveis. É praticamente impossível fazer uma pirâmide na blockchain da Ethereum sem isso ser passível de checagem no código do smart contract.
Um novo Dapp, o FOMO3D, subverte esse raciocínio. O aplicativo, assumidamente uma pirâmide, já acumula um prêmio de mais de 20.000 ethers. O principal ponto do jogo é: o último a comprar uma chave em um determinado round ganha uma bolada. Entretanto, toda vez que se compra uma chave, se adiciona um certo tempo ao timer do round. Ganha-se também uma participação no que as pessoas investem, para além da bolada principal. Com isso, há incentivos para “investir” no jogo se você acredita que participantes antigos retornarão para ganhar a bolada e que novas pessoas entrarão ao longo do tempo.
Mesmo sendo extremamente similar a um esquema Ponzi, o FOMO3D – de “Fear Of Missing Out” (“medo de ficar de fora”, fenômeno que motiva alguns investimentos ruins no mundo cripto) –ainda dá incentivos para indivíduos racionais entrarem nela. A estrutura de game que foi dada ao golpe financeiro torna tudo muito mais interessante. Reguladores possivelmente verão analogias com “jogos de azar”, cabendo, se for essa a interpretação dominante, uma regulação distinta das pirâmides convencionais. Essa distinção, contudo, não elimina o fato do jogo ser um scam.
Essa questão ilustra como a transparência da tecnologia não resolve todos os problemas relacionados a usos escusos. Particularmente, não vejo nada de regulável num golpe que se assume golpe: entra quem quiser. Vejo, porém, que transparência não é uma panaceia como se diz. Muitas outras aplicações menos obviamente Ponzi podem ter incentivos perversos que, mesmo claros, trarão usos danosos a quem entrar. Um exemplo seria o “Augur”, já comentado nessa coluna. Creio que também devemos ter com dapps os cuidados que temos com aplicativos centralizados. Nesse caso, apesar do alardeado sobre a confiança nas blockchains, qualquer uso dessa tecnologia deve vir com uma salutar dose de desconfiança.