Por Ana Beatriz Bartolo
Investing.com - As discussões sobre a proclamação de Repúblicas dentro da Commonwealth devem acelerar com a morte da Rainha Elizabeth II. Apesar da possibilidade da Família Real inglesa deixar de atuar como chefe de Estado de alguns países da comunidade, a relação econômica entre os membros do grupo não deve ser impactada.
Pelo menos essa é a visão de Eduardo Fayet, professor de Relações Institucionais e Governamentais na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Fayet acredita que após 70 anos no trono do Reino Unido, a morte da Rainha Elizabeth II no último dia 08 representou uma grande ruptura política, pois sua figura era considerada a personificação de um equilíbrio institucional.
Porém, ao olhar para a Commonwealth, já era possível dizer que a monarquia não é essencial para a manutenção do grupo que surge a partir de antigas colônias do Império Britânico, uma vez que alguns membros já são repúblicas, como no caso da Índia.
A mudança no trono britânico deve ser sentida em uma escala mais local, com o Rei Charles III não possuindo o mesmo carisma da mãe. A crise econômica do Reino Unido, o Brexit e a Guerra na Ucrânia são grandes eventos que acontecem em um período histórico curto, o que vai exigir habilidade do novo rei, para mostrar a mesma estabilidade que Elizabeth representava.
Ainda assim, Fayet acredita que dependendo da estratégia que será adotada, o Rei Charles III pode aumentar a sua popularidade no Reino Unido e na Commonwealth se aproximando de pautas progressistas, como as relacionadas à sustentabilidade e ao mercado verde.
Fayet concedeu uma entrevista em exclusividade para o Investing.com Brasil, falando sobre como a morte da Rainha Elizabeth II pode afetar o futuro do Reino Unido e da Commonwealth e o que as próximas décadas podem representar para esse conjunto de países.
Confira os destaques.
Investing.com Brasil - Qual é a diferença realmente entre o Reino Unido e a Commonwealth?
Eduardo Fayet - O Reino Unidos é quem exerce uma liderança na Commonwealth. O grupo foi criado no século XX para ser o que hoje nós chamamos de um bloco. São países que tinham como objetivos comuns o seu desenvolvimento econômico e social. Esse é o grande objetivo da Commonwealth. São países que faziam parte do Império Britânico e que agora se organizam para ter vantagens entre as suas relações.
Inv.Br - Mas todos possuem a monarquia britânica como chefe de Estado, como o Reino Unido?
EF - Há duas situações diferentes. Uma tradicional, que são os países que fazem parte da Commonwealth e têm como representante de Estado o agora Rei da Inglaterra, como é o caso do Canadá e da Austrália, mas também tem aqueles que não o reconhecem, como a Índia. Mais do que essa questão sobre o chefe de Estado, a Commonwealth é para gerar negócios e continuar as relações comerciais e alianças entre essas economias que faziam parte do Império Britânico, que foi o último grande império mundial.
Inv.Br - Mas até que ponto o antigo Império Britânico ainda influencia na força da Commonwealth?
EF - A Inglaterra de certa forma ainda consegue manter essa dominância do ponto de vista político e econômico, mas nessa modalidade um pouco mais flexível e moderna. Mas a família real perdeu muito poder nos últimos 70 anos, em partes até por conta de uma autocrítica, e o grupo de países que nasceu pela dominação agora participa do Commonwealth de forma voluntária e democrática.
Inv.Br - Antígua e Barbuda já anunciou que vão realizar plebiscitos para avaliar se eles vão permanecer com o monarca britânico como chefe de Estado ou se vai virar República. Esse tipo de processo vai começar a se intensificar agora que a Rainha Elizabeth II faleceu e o Rei Charles III não é tão popular quanto a mãe?
EF - É normal que esses questionamentos aconteçam, mas o mais relevante é observar em que velocidades eles vão começar a surgir. Mesmo a Austrália, que é um país importante dentro do Commonwealth, já tem um processo de questionamento bastante forte sobre o chefe de Estado. Então isso acontecerá gradualmente, primeiro porque há uma tendência mundial em que os países tenham uma maior independência e autodeterminação. O segundo motivo é a ampliação das liberdades, que é impulsionada pelo uso das tecnologias como uma ferramenta de acesso à informação e de promoção das individualidades. E o terceiro elemento é a morte da própria Rainha Elizabeth.
Inv.Br - Qual era o papel exato da Rainha na manutenção da monarquia como chefe de Estado em outros países?
EF - A Rainha Elizabeth tinha uma forma de atuar no mundo peculiar. Ela não era uma uma pessoa arrogante, mas sim de hábitos relativamente simples e discretos. A sua principal característica é que ela não se envolveu em grandes escândalos, como de corrupção ou sexuais, por exemplo, que ferem os valores mais tradicionais da sociedade. Então, isso deu a ela uma confiança por parte da população. Ela era a personificação de um equilíbrio institucional necessário.
Inv.Br - E o Rei Charles III consegue passar a mesma imagem?
EF - Não, o Rei Charles III tem bastante dificuldade nisso porque ele já se envolveu em tudo isso que a mãe dele não se envolvia. Ele tem uma postura de superioridade perante os outros, o que ela não tinha. E isso é relevante para os novos súditos. Dos dois bilhões de pessoas que tem o rei da Inglaterra como chefe de Estado, 70% tem menos de 30 anos. Então, é um volume de pessoas muito jovens que podem questionar por uma transformação. Apesar que eu acho que é importante destacar o esforço do novo rei em ter uma proximidade com a população, ao tratar temas modernos, como a questão da justiça e da conservação do meio ambiente. Há uma possibilidade que ele consiga construir e executar uma estratégia de abordagem com esses jovens súditos, desde que sejam com pautas progressistas, mas é preciso esperar para ver.
Inv.Br - O Reino Unido passa por dificuldades econômicas internas com inflação elevada e desaceleração do crescimento, além de problemas políticos com a renúncia de Boris Johnson e imagem arranhada após o Brexit. É possível que o Rei Charles III junto com a nova primeira-ministra consigam reverter esse cenário?
EF - O Reino Unido é uma monarquia constitucional e lá isso é obedecido de forma muito disciplinada. Então, por exemplo, o Charles se envolveu em questões políticas como a questão ambiental, mas agora ele é Rei e provavelmente tomará muito cuidado, porque qualquer ação política tem um impacto econômico, mas de forma objetiva, ele não pode tomar nenhuma decisão, porque ele não tem esse poder.
Inv.Br - Quais os desafios que a primeira-ministra Liz Truss vai ter que enfrentar então?
EF - A Inglaterra tem três grandes problemas para resolver, num primeiro momento. A questão do Brexit, porque eles ainda não resolveram aquela relação com a União Europeia. E isso afeta a segunda questão que é a crise inflacionária, que é um problema global. E o terceiro problema é como que o país se posiciona no mundo do ponto de vista estratégico. O Reino Unido sempre foi um país o qual teve um posicionamento estratégico muito importante. Mas com a saída da comunidade europeia e agora com a morte da Rainha, que era um ponto de equilíbrio, isso coloca o Reino Unido em uma situação de xeque, como num jogo de xadrez. São grandes acontecimentos em um curto espaço de tempo. Isso tudo, junto com a Guerra na Ucrânia, fará com que a Truss precise do apoio da Família Real de forma estrutural, ainda mais porque a monarquia tem o Commonwealth como um instrumento de mundialização de políticas e negócios que poderá atenuar algumas dessas questões.
Inv.Br - A libra esterlina foi a principal moeda internacional até o século XX, até ser substituída pelo dólar. Mas mesmo assim ela continua mantendo um um status de moeda conversível internacionalmente. Qual é a perspectiva da libra se manter com esse status de relevância no no sistema monetário internacional?
EF - Eu acho que a libra perde a sua representatividade, por causa da perda do Reino Unido no cenário mundial, mas ela não perde a sua força. No começo do século XX, a Inglaterra tinha um peso econômico muito forte na economia internacional. Hoje a China, o Japão, a Coreia do Sul, os países asiáticos de uma maneira geral, tiveram um crescimento econômico brutal, isso sem falar do Ocidente e dos Estados Unidos. Então, o Reino Unido perdeu um pouco essa relevância relativa, porque esses outros cresceram muito mais rápido. Então, a libra perde representatividade por causa disso e mais alguns fatores, como a criação do próprio euro que se move pelo continente europeu. Então, a libra também ficou como uma moeda muito nacional. É uma moeda local muito forte, mas que não tem o mesmo peso do começo do século XX.
Inv.Br - Esse cenário também pode fazer com que Londres perca um pouco do protagonismo como um dos principais centros financeiros do mundo?
EF - Eu acho que não, porque Londres não é um centro financeiro que opera apenas o Reino Unido. Lá estão empresas de praticamente todo o mundo. É a mesma coisa com Nova Iorque e Tóquio. Esses são grandes centros financeiros mundiais que têm o seu protagonismo hoje globalizado. Então as operações em Londres atraem pela segurança e diversidade. Além disso, há uma disputa para saber quem irá liderar o desenvolvimento econômico verde e Londres tem muito potencial para isso. Há inclusive a possibilidade do Rei Charles estimular isso, já que ele é um simpatizante desse mercado nascente.