Por Luciano Costa
SÃO PAULO (Reuters) - O Brasil tem registrado um volume de adesões quase recorde ao mercado livre de energia, ambiente em que empresas com certo nível de consumo podem negociar preços e condições diretamente com companhias de geração ou comercializadoras, ao invés de serem obrigatoriamente supridas por concessionárias de distribuição.
A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que administra operações nesse mercado, tem visto um forte ritmo de migração de empresas para o nicho, com cerca de 130 adesões mensais até o momento, atrás apenas dos números de 2016.
"É o segundo melhor ano que estamos tendo. E a razão principal disso são os preços, que estão atrativos", disse à Reuters o presidente do conselho da CCEE, Rui Altieri.
Em 2019, até então segundo ano em registro de migrações, em média 118 empresas aderiram ao mercado livre por mês.
O fluxo em 2020 acontece enquanto preços de contratos livres de energia recuam ao menor nível desde 2016, em meio à queda na demanda associada à crise do coronavírus, com quarentenas em diversos Estados e municípios para tentar conter a disseminação da doença levando ao fechamento de muitas empresas e reduzindo atividades na indústria.
O movimento lembra em parte uma onda vista em 2016, quando as migrações envolveram média de 192 empresas por mês, ajudadas por uma disparada das tarifas das distribuidoras enquanto a crise econômica derrubava os preços dos contratos bilaterais.
"Neste ano estamos com uma segunda onda. E a grande característica que estamos constatando agora é que isso é para atender consumidores pequenos", acrescentou Altieri.
A maior parte das empresas que tem sido autorizada a operar no mercado em 2020 tem demanda de cerca de 0,6 megawatt, contra um mínimo exigido em lei de 0,5 megawatt, apontou ele, citando como exemplos redes de lojas e supermercados e até mesmo grupos do setor de educação, como universidades e redes de escolas.
O forte crescimento do mercado livre acontece enquanto o governo do presidente Jair Bolsonaro busca aprovar uma reforma no setor elétrico que aumentaria a importância desse nicho.
Em tramitação no Senado, a reforma prevê gradual redução de exigências para que empresas atuem no segmento. Se aprovada, ela ainda definiria prazo de quatro anos para que o governo apresente plano prevendo que todos consumidores, inclusive residenciais, possam negociar livremente sua energia.
O número de empresas no mercado livre, incluindo geradores e comercializadoras, alcançou 10 mil nesta terça-feira.
COMERCIALIZAÇÃO CRESCE
O aquecido interesse pelas negociações livres de energia e as perspectivas geradas pela reforma em discussão também têm fomentado a criação de novas comercializadoras de eletricidade.
A CCEE autorizou 36 novas "tradings" de energia até agosto, salto de 11% frente ao final de 2019, e há cerca de 70 na fila.
As maiores comercializadoras são ligadas a elétricas como Engie (SA:EGIE3), EDP (SA:ENBR3) Brasil e Cemig (SA:CMIG4), e ao banco BTG Pactual (SA:BPAC11), mas também há muitas empresas independentes, incluindo diversas com faturamento bilionário, como Comerc Energia e Focus Energia.
A expansão recente do mercado tem atraído mais agentes do setor financeiro --Santander, Itaú e Daycoval criaram comercializadoras recentemente. Mas o apetite também levou alguns empresários a abrirem "tradings" apenas para posterior venda a terceiros, conhecidas no ramo como "de prateleira".
A CCEE tem discutido junto à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) uma proposta para coibir essa prática, o que poderia exigir nova análise sobre os riscos de comercializadoras e seus sócios em caso de mudança de controle, disse Altieri.
Uma audiência pública sobre o tema foi aberta pela Aneel e envolve também debate sobre endurecimento nas regras para desligar do mercado comercializadoras que descumpram obrigações.
CHAMADAS DE MARGEM
As discussões sobre o aprimoramento de regras no mercado livre começaram após algumas comercializadoras terem descumprido contratos no ano passado, alegando apostas erradas no movimento dos preços da energia e impactos em cadeia devido a problemas inicialmente registrados por uma "trading" novata no setor.
Na ocasião, a CCEE apresentou à Aneel proposta para estabelecer chamadas de margem semanais como garantia junto às comercializadoras --os valores exigidos seriam calculados de acordo com o risco a que cada empresa está exposta no mercado.
Mas o mecanismo, inspirado em negociações em mercados de ações e commodities, enfrentou resistência e as discussões na Aneel não avançaram, o que levou a CCEE a voltar à prancheta.
"Realmente não houve um consenso com o mercado, as comercializadoras têm um ponto de vista bastante diferente do nosso. Estamos trabalhando junto com o mercado para estabelecer uma nova proposta", disse Altieri, ao prever que a nova proposição deve ser divulgada ainda no segundo semestre.
O chefe da CCEE, porém, disse que não tem grande preocupação no momento com possíveis novos problemas financeiros de comercializadoras, mesmo após muitos clientes terem pedido para renegociar contratos devido à queda de consumo com a pandemia.
"No início do mês de março, abril, houve preocupação... mas o mercado mostrou uma grande maturidade", afirmou ele, apontando que a CCEE tem monitorado a situação.
(Por Luciano Costa; edição de Roberto Samora)