“Desculpe o balde de água-fria… Mas escrever uma descrição dessa ‘coisa’ para o público geral é uma tarefa muito difícil.” - Satoshi Nakamoto, sobre o Bitcoin (2010).
Mesmo depois de 13 anos de existência, explicar o que é o Bitcoin ainda parece ser uma das tarefas mais árduas para os entendidos e entusiastas de cripto. Uma vez que o assunto pode ser abordado por muitos pontos de vista diferentes, como o tecnológico, matemático, econômico e até mesmo o filosófico.
Isso é compreensível, dado que quando descrevemos o Bitcoin como invenção, temos que escolher entre esclarecer o propósito que ele foi criado para servir como meio versus como o modo como ele realmente funciona por baixo dos panos. E o fato é que ao tentar fazer as duas coisas ao mesmo tempo, acabamos não fazendo nenhuma delas direito.
E após muito pensar para encontrar um jeito de explicar o Bitcoin sem falar em meios de pagamento ou em reservas de valor, finalmente cheguei à seguinte definição: Bitcoin é uma ferramenta global de contabilidade, de livre acesso e operação, confiável e transparente e que funciona com uma moeda corrente própria, inconfiscável, anti-inflacionária e escassa, representada pela sigla BTC. Eu sei que foi muita coisa de uma vez só, mas para facilitar vamos dividir essa definição por partes:
Ferramenta global de contabilidade
O Bitcoin pode ser imaginado como uma planilha digital que registra diversas carteiras, cada uma das quais tendo o seu próprio saldo. A todo momento, podemos conferir as transferências destes saldos entre as carteiras, além de todo o histórico de movimentação, como se o Bitcoin fosse um grande “extrato bancário” de todos os participantes desde o momento em que a primeira carteira começou a funcionar.
É por isso que muitas vezes vemos o Bitcoin ser explicado como algum tipo de “ledger”, que se traduz para o português em “livro-razão”, ou um registro de transações e consolidação de valores. Livros-razão são uma ferramenta fundamental para a organização humana, e quase tão antigos quanto a arte da escrita.
De livre acesso e operação
O Bitcoin não é um livro-razão escrito, mas sim uma versão digital que funciona como um sistema computadorizado, disponível para acesso através da internet.
Uma das principais características deste sistema é que ele não filtra ou censura as atividades dos seus usuários, estando disponível para qualquer um que queira criar uma carteira e interagir, seja recebendo ou enviando bitcoins. Ao mesmo tempo, o Bitcoin também não é mantido por uma entidade central, como o serviço de emails da Google (NASDAQ:GOOGL) ou as redes sociais que conhecemos, como Instagram e Facebook (NASDAQ:META), nem por um banco privado como seria o caso dos serviços de internet banking do Itaú, da Caixa Econômica ou do Branco do Brasil.
Ao invés de depender de uma empresa ou de um servidor central, o ativo funciona com a colaboração de diversos operadores que se encontram espalhados ao redor do mundo. Eles mantêm uma série de computadores em execução que trabalham o tempo todo para atingir um consenso distribuído, ou seja, um jeito de entrarem em acordo entre si e garantirem que os saldos de cada carteira estejam sempre corretos e que todas as transações que ocorram na rede sejam válidas e autorizadas.
Por funcionar deste jeito, o Bitcoin consegue garantir que qualquer um que deseje interagir com a rede tenha essa possibilidade, uma vez que não tendo um ponto central de operação, fica impossível coordenar ações como sanções, censuras ou falsificações no nível dos operadores.
Confiável e transparente
Uma vez que transferimos a responsabilidade de se operar um sistema de um ator central, para vários atores distribuídos e igualmente capazes, eliminamos pontos centrais de falha e criamos um arranjo mais resistente, caso um ou mais dos operadores venham a ter problemas, os outros ainda podem manter a rede em operação. Isto é ótimo!
Mas um novo problema que surge é saber se estes operadores todos irão de fato cooperar entre si ou se irão tentar sabotar uns aos outros, a fim de tirarem o melhor proveito para si próprios, mesmo que isso signifique prejudicar a rede e os seus usuários.
Para contornar, a rede recompensa os seus vários operadores através de uma dinâmica competitiva conhecida como “mineração”: muito famosa pelo seu nome, mas talvez pouco compreendida em seus detalhes técnicos. O mais importante sobre essa dinâmica de recompensas é saber que ela cria um “jogo econômico”, no qual o comportamento honesto junto à rede oferece mais incentivos financeiros do que os lucros que poderiam ser obtidos através de uma fraude.
De acordo com as palavras do próprio Satoshi, em um de seus primeiros emails explicativos sobre o Bitcoin: “O valor que pode ser roubado deverá ser sempre menor do que o esforço requerido para roubá-lo”. Isso cria uma situação única, onde a confiança que normalmente deveria ser atribuída a boa vontade e ao caráter dos operadores do sistema se torna desnecessária. Mesmo os que poderiam se tornar corruptos não irão atuar contra a rede, já que isso significaria prejuízo certo para os seus bolsos.
Todas as operações conduzidas neste sistema contábil, bem como todos os saldos das carteiras são publicamente expostos e auditáveis. O código-fonte do sistema também é aberto e pode ser conferido por qualquer um. É por isso que muitos se referem ao Bitcoin como um sistema “trustless”, um sistema que “dispensa confiança”, ou melhor dizendo, um sistema que dispensa a confiança humana em autoridades centrais como os Bancos ou Governos.
Que funciona com uma moeda própria, inconfiscável, anti-inflacionária e escassa
Como sistema de contabilidade, o Bitcoin não mantém registros de saldos em dólares, reais, ou qualquer outra moeda conhecida, mas sim de uma moeda própria da rede, chamada bitcoin, que pode ser representada pela sua icônica sigla BTC.
Os saldos dos usuários de uma carteira de BTC são completamente inconfiscáveis. Isso é possível através de um mecanismo matemático e criptográfico que torna impossível para qualquer um além do próprio dono da carteira, movimentar os seus fundos. Nem mesmo os operadores (mineradores) da rede são capazes de fazê-lo.
Para garantir essa proteção, claro, os donos das carteiras devem criar suas próprias carteiras e protegerem suas “chaves privadas”, que são conjuntos de caracteres similares a uma senha. Uma chave privada confere ao usuário o poder de assinar as suas próprias transações na rede, dando para elas a legitimidade necessária para transferência dos seus fundos e sem a mesma, o dinheiro não pode ser movimentado de forma alguma.
Esta proteção se perde quando o usuário utiliza exchanges ou quando delega a custódia das suas moedas para um banco ou instituição financeira. Neste caso, ele volta a ter que confiar no ator central para o qual delegou a responsabilidade.
Como moeda, o bitcoin é anti-inflacionário e escasso por uma regra fixa que limita a emissão máxima em 21 milhões de BTC. Algo bem diferente do comportamento de uma moeda fiduciária como dólar ou real, cuja emissão é ilimitada enquanto os bancos centrais dos respectivos países desejarem “imprimir” mais dinheiro.
No geral, estas características conferem ao Bitcoin propriedades similares à de uma commodity como o ouro, que também é escasso, divisível, que não pode ser falsificado e que também exige um esforço para ser “extraído” como recurso; com a diferença de que enquanto o ouro de verdade exige o esforço da mineração física, BTC exige o esforço digital da mineração computacional.
Uma vez que se entendam essas características essenciais do Bitcoin, creio que temos melhores condições de mergulhar na história de Satoshi, levantando algumas questões muito importantes, como: Quais acontecimentos levaram o Satoshi a inventar o Bitcoin? Por qual motivo Satoshi acredita que o Bitcoin deveria ou poderia vir a servir? O que Satoshi esperava do futuro para o Bitcoin?
Eu entendo esses argumentos, mas sinto que já estamos fazendo isso há muito tempo. Quem sabe, talvez, mergulhar na história de Satoshi e tentar conhecê-lo melhor não possa trazer, para os tempos de hoje, insights mais importantes do que apenas o estudo técnico da sua criação?