As matérias-primas originadas da produção agropecuária têm um papel importante na formação de custos e de preços de muitos outros produtos que estão à disposição dos consumidores. Variações de preços ao produtor agrícola tendem a ser repassadas aos consumidores em intensidades e defasagens distintas, a depender, em primeiro lugar, dos custos de comercialização: como estão as condições (qualidade e disponibilidade) de transporte, armazenamento e processamento. Igualmente importantes são as cláusulas estabelecidas nos contratos entre as partes (transações no spot ou via contratos a termo, preços fixados ou a fixar), da parcela da produção que é exportada (determinando o grau em que os preços domésticos são influenciados pelo câmbio e preços em dólares) ou da parcela da demanda que é atendida com as importações. É claro que a estrutura do mercado é muito importante para fixação de margens de lucro e o ritmo de ajustes às condições cambiantes de mercado. Em condições normais (de estabilidade), sabe-se que as variações de preços – para cima ou para baixo - ao produtor são mais intensas do que ao consumidor. Os custos de comercialização são compostos de itens cujos preços (salários, aluguéis, energia etc.) são mais estáveis (reajustados anualmente, em alguns casos).
Estudos elaborados por pesquisadores do Cepea, com base em análise multivariada de séries temporais, apontam que um choque de 10% no preço do arroz em casca ao produtor brasileiro impacta em cerca de 7,7% no preço do próprio arroz em casca após 12 meses, e em cerca de 2,6% no preço do arroz no mercado varejista do Brasil. Se ocorrer um choque de 10% no preço da soja em grão, 4,8% chegam até o consumidor final de óleo de soja refinado. Já um choque semelhante no preço do milho em grão tende a impactar em 1,7% sobre o de frango e em 1,4% sobre os de ovos, ambos também no mercado varejista. Por outro lado, no mercado de algodão, choque no preço da pluma praticamente não afeta o de roupas no varejo. Nesta cadeia produtiva, a pluma pode ser substituída por fibras artificiais e sintéticas e em qualquer elo da cadeia produtiva (que é longa) pode haver importação e/ou exportação de seus produtos. Importante citar que essas análises foram elaboradas com dados de 2001 a 2018.
Em 2020, o que se viu foram variações distintas de preços ao produtor agrícola brasileiro, em que muitas cadeias produtivas foram impactadas por elevações das paridades de exportação e de importação. O principal fator de sustentação das paridades foi a taxa de câmbio, que, de maio a outubro de 2020, ficou entre 31% e 41% acima da média do mesmo período de 2019. Também pode ser citado um deslocamento pontual da demanda doméstica, como no caso do arroz.
Segundo dados do Cepea, o preço do arroz ao produtor foi o que registrou a variação mais intensa no acumulado em 2020 (102,2%), influenciado pelas paridades e por um choque de demanda. Em seguida, as variações nos mercados de soja e de milho estiveram entre 70% e 84%. No mercado de soja, os movimentos foram próximos. Assim, as variações nos preços no porto de Paranaguá (PR) (73,2%), nos valores recebidos pelo produtor (73,8%) e nas transações do produto limpo e seco entre as empresas (atacado) (77,4%) foram semelhantes.
Já quanto ao milho, as variações percentuais foram diferentes entre os níveis ao produtor e ao atacado, assim como entre regiões para um mesmo nível de mercado. Na média, os preços ao produtor subiram 84,1%, enquanto os do mercado de atacado (lotes), 69,1%, e os da região de Campinas (SP), 56,4%. No mercado de milho, as condições de oferta e demanda região impactam suas cotações no curto prazo.
Os preços do trigo, influenciados especialmente pela paridade de importação, tiveram altas expressivas em 2020, com variações acumuladas de 59,5% ao produtor e 56,4% no mercado atacadista. Os avanços internacionais e dificuldades de aquisições na Argentina deram o tom altista.
Os valores de algodão foram pressionados negativamente no início da pandemia, devido à menor produção industrial, mas passaram a se sustentar no segundo semestre, com a retomada das atividades econômicas no Brasil e no mundo, acumulando quase 50% de alta em 2020.
Por outro lado, numa cadeia voltada para o mercado interno principalmente como mandioca, pesaram mais os eventos domésticos. Os preços da raiz para indústria no Centro-Sul do País tiveram quedas praticamente até agosto de 2020, mas voltaram a apresentar recuperação nos meses seguintes. Mesmo assim, na média, o ano se encerrou com preços nominais 4,2% menores que os de 2019.
Os preços de produtos agrícolas tiveram relação com a dinâmica observada no setor industrial, que se ajustava às especificidades de cada produto no que tange aos avanços e recuos ligados à pandemia. Considerando-se alguns mercados como exemplo, dados do IBGE apontam um salto na produção industrial referente a “beneficiamento de arroz e fabricação de produtos de arroz” até meado de 2020, comparativamente a 2019, e queda mais intensa na “preparação e fiações de fibras têxteis” no mesmo período. Em seguida, caminharam para sentidos opostos novamente. No ano, o índice da industrialização acumulou alta de 0,6%, enquanto o de fibras têxteis, queda de 2,1%.
Também chama a atenção a “Fabricação de margarina e outras gorduras vegetais e de óleos não-comestíveis de animais”, com ritmo intenso de produção desde o segundo trimestre do ano, acumulando alta de 10,3% no ano. Também houve crescimento nos índices dos setores de “Fabricação de óleos vegetais em bruto, exceto óleo de milho” (4,5%), de “Abate de suínos, aves e outros pequenos animais” (2,9%), “Moagem, fabricação de produtos amiláceos e de alimentos para animais” (2,0%) e “Fabricação de óleo vegetais refinados, exceto óleo de milho” (0,7%). A “Moagem de trigo e fabricação de derivados” ficou praticamente igual ao observado em 2019 (+0,1%) (IBGE).
Outros setores tiveram índice industrial inferior ao observado em 2019, segundo o IBGE. Podem ser citados o “Abate e fabricação de produtos da carne” (-1,3%), “Laticínios” (-5,9%) e o de “Fabricação de produtos de carne” (-6,1%).
As variações de preços ao produtor e a dinâmica industrial durante a pandemia estão correlacionados com as variações de preços observadas no mercado varejista ao longo do ano. Os preços de óleo de soja (103,8%) e de arroz (76,0%) foram os que apresentaram as maiores altas no mercado varejista. Em seguida, aparecem os setores que utilizam os coprodutos de soja e milho como ração animal e que, portanto, tiveram elevações de custos de produção, como os setores de suínos (29,6%), frangos (17,2%), laticínios (entre 16,8% e 26,9%) e de carnes bovinas (18,0%). A boa demanda interna e o intenso ritmo das exportações também sustentaram os preços desses produtos ao longo das cadeias produtivas.
Os preços das farinhas de trigo também tiveram reações consideradas expressivas (15,0%), mas também abaixo da registrada para a matéria-prima. Por outro lado, os preços de pão francês (5%) e de panificados (5,0%), de forma geral, tiveram avanços próximos aos da média da inflação do mercado varejista como um todo. Entre os produtos derivados da mandioca, como farinha (11,5%) e de farinha, féculas e massas (7,3%), as variações foram menos intensas. Por fim, os preços gerais do setor de roupas tiveram quedas em relação aos de dezembro/19 (2,0%), pressionados pela menor demanda especialmente no primeiro semestre.
Por Lucílio Rogério Aparecido Alves
Professor da Esalq/USP
Pesquisador responsável pelas Equipes de Grãos, Fibras e Amidos do Cepea