Com sua rara sabedoria, o filósofo Homer Simpson resumiu: “Todo mundo sabe que o rock atingiu a perfeição em agosto de 1972”. É uma referência, claro, ao “Made in Japan”, do Deep Purple, entre os maiores shows de todos os tempos.
Dei sorte na vida. Um dos primeiros CDs que entraram na minha casa foi justamente esse. Papai se orgulhava de ter comprado a versão americana, enquanto eu tinha dificuldade de entender aquilo: “versão americana, Made in Japan?”. Fingia de morto e atendia ao insistente pedido de repetir a faixa 3, que vinha sempre com aquela pronúncia caprichada: “põe de novo aquela que eu gosto do De Purpól… aumenta, pô”. Logo os riffs de “Smoke on the Water” se misturavam, sinestesicamente, à fumaça de Galaxy que adentrava o copo de whisky.
“ A única lembrança mais precisa que tenho é de uma gravação pirata de ‘Child in Time’ feita em Duisbuirg, em 1970, a sonoridade dos Klipschorn era mesmo excepcional, esteticamente talvez tenha sido o momento mais bonito da minha vida, faço questão de dizer isso porque a beleza talvez possa servir para alguma coisa, enfim, devemos ter ouvido a canção umas trinta ou quarenta vezes, fascinados em cada uma delas pelo movimento de enlevo absoluto com que Ian Gillan, acima do domínio tranquilo de Jon Lord, passava da palavra ao canto e depois do canto ao grito e retornava à palavra, seguido imediatamente pelo break majestoso de Ian Paice, é verdade que Jon Lord o apoiava com sua habitual combinação de eficácia e grandeza, mas de todo modo o break de Ian Paice era suntuoso, com certeza o mais belo break da história do rock, depois Gillan voltava e se consumava a segunda parte do sacrifício, Ian Gillan passava da palavra ao canto outra vez e do canto ao puro grito, e pouco depois a faixa infelizmente terminava e não tínhamos outro remédio senão pôr a agulha de novo no começo, e poderíamos viver assim eternamente, não sei se eternamente, claro que era uma ilusão, mas uma bela ilusão.”
Nietzsche dizia que, sem música, a vida seria um erro. Steve Jobs acreditava que o conteúdo do iPod de uma pessoa falava muito sobre ela. Música é coisa séria. Investimento também. De algum modo, “Child in Time” liga esses dois mundos. Embalado pela canção, que vim ouvindo para o trabalho, três coisas me vieram à cabeça: i) a música é um protesto contra a guerra do Vietnã; ii) ela fala do massacre de jovens nos conflitos; e iii) apesar de certamente representar um momento de extraordinário brilhantismo, a música jamais seria possível sem a primazia da técnica.
Se, de um lado, estou muito animado com o aumento do número de pessoas físicas na Bolsa, de outro, também nutro grande preocupação. Tenho notado um clima de grande beligerância entre os investidores, sobretudo os novatos, nas redes sociais com qualquer tipo de opinião contrária às suas. Há uma postura infantilizada, muitas vezes por meio de argumentos ad hominem, contra qualquer antítese às suas próprias teses.
No final de semana, postei no meu Instagram uma referência à carta da Squadra, em que, entre outras coisas, a gestora fundamentava a manutenção de sua posição short (vendida) nas ações do IRB (SA:IRBR3). Parte dos investidores comprados em IRB, em vez de tentar entender os pontos, verificar se faziam sentido e testar a validade da sua hipótese de que as ações eram boas, veio desqualificar a gestora. O argumento típico: “Squadra está desesperada com a alta das ações de IRB na sexta-feira e quer forçar uma queda dos papéis.” A Squadra não está desesperada e muito provavelmente começou a escrever a carta antes de sexta-feira.
Obviamente, porém, não estou preocupado com o caso particular. Trato do ocorrido porque ele revela uma postura geral, de criticar sem argumentos embasados qualquer opinião contrária à sua. Forma-se uma espécie de Fla-Flu entre comprados e vendidos na análise, e a racionalidade do investidor dá lugar à mera torcida. Quando a emoção entra no lugar da razão, a consequência costuma ser o massacre dos jovens investidores — não no sentido biológico da juventude, mas na ingenuidade, na superficialidade e na infantilidade com que tratam temas profundos e complexos.
O investidor deveria usar uma tese antagonista à sua como forma de aprimorar a própria análise, voltar ao case e estudar se aquelas críticas fazem ou não sentido. Se fazem, talvez seja o momento de mudar de ideia. Se não fazem, podem inclusive abrir oportunidade para reforço da posição — neste caso, dado que parte do mercado pensa diferente de você, é possível que as cotações correntes não incorporem adequadamente as suas próprias convicções; haveria ali uma assimetria de informação a seu favor, que poderia ser aproveitada.
Na prática, porém, parte das pessoas físicas prefere atacar o adversário intelectual, como se a desqualificação pessoal fosse fazer a sua ação subir. Preferem o viés de confirmação, ler e valorizar apenas as opiniões que apenas corroboram suas próprias convicções prévias.
Esse sempre foi um problema inerente ao investidor, devidamente documentado pelas Finanças Comportamentais. A fragilidade, entretanto, tem crescido, porque os algoritmos das grandes empresas de tecnologia vão nos mostrando apenas fatos, notícias e opiniões semelhantes àquelas de que já gostamos (porque elas sabem que isso maximiza nossos cliques e nossa audiência). A consequência prática é que o investidor tende a caminhar para o extremismo das opiniões, concentrando posições nos nomes de que já gostava e, talvez, até se alavancando.
Nessa guerra fria de opiniões e quente de alocações subótimas, em sua maioria muito concentradas, outro ponto me preocupa. Identifico dois grupos fragilizados nessa era dos gurus das redes sociais — como diria Groucho Marx, “eu me recuso a fazer parte de um clube que me aceita como sócio”; por favor, não tome a Empiricus como um herói a ser seguido cegamente. Como diz nossa cartilha de Princípios em sua última linha, “estamos aqui apenas tentando lidar com o nossos graves defeitos”.
O primeiro grupo segue com fundamentalismo religioso o novo guru da moda. Aleatoriamente, entre vários influenciadores de financistas, um ou outro vai acertar o último trade do momento — você critica o valuation das Bolsas americanas e acerta na Covid-19, mas tudo bem… quem se importa, não é mesmo? Então, o novo acertador de última hora, que Taleb muito provavelmente chamaria de “iludido pelo acaso”, vira o novo mestre a ser seguido. A primeira lição dessa história é que não há heróis. Erros, necessariamente, fazem parte do processo de investimento, que é algo ligado a probabilidades, não a certezas. Estamos num ambiente permeado por incertezas e aleatoriedade; o futuro permanece opaco e impermeável, de modo que todos aqueles que sabem o que vai acontecer estão, cedo ou tarde, condenados ao erro. Não é um demérito do respectivo guru, é simplesmente porque ele não era um guru. Entre as habilidades humanas, não está aquela de prever o futuro.
Além disso, mesmo que o tal guru esteja certo, suas necessidades, seu perfil de risco, seu patrimônio financeiro, seu horizonte temporal podem ser diferentes daqueles de sua audiência. Se algo serve para A, não necessariamente servirá para B.
O segundo grupo, em alguma medida, é oposto ao primeiro. Ele percebeu que o verdadeiro heroísmo está em perceber que não há herói algum. Eu mesmo sou um financista que acredita muito pouco nos financistas. Isso, porém, não pode ser confundido com o abandono da técnica, da análise profunda, do contato com os melhores profissionais de mercado, com o desprezo pela ciência. Adotar uma postura questionadora e cética sobre os financistas e influenciadores digitais não significa ignorar suas opiniões.
Ian Gillan e Ritchie Blackmore jamais conseguiriam fazer o que fazem em “Child in Time” sem anos e anos de estudo e prática; sendo um amador, você não competiria com os gritos agudos e afinados do vocalista, tampouco pensaria ser capaz de rivalizar com os solos do guitarrista. Provavelmente, você não se sentiria apto a superar Lewis Hamilton numa corrida em Mônaco na chuva. Cuidar de forma responsável e individual de sua saúde não significa deixar de ir ao médico — ao contrário, você continuará consultando um especialista.
Tom Nichols está certo em sua preocupação sobre a “morte da expertise”. A disseminação das redes sociais deu voz a qualquer um sobre os mais variados assuntos, como se toda opinião tivesse o mesmo peso. Uma mensagem enviada pelo WhatsApp tem hoje muitas vezes a mesma relevância de uma coluna publicada por um técnico num jornal de grande circulação.
Se, por um lado, devemos nos preocupar com a falsa expertise para não sermos seduzidos por falsos gurus, ao mesmo tempo não podemos desprezar a importância de opiniões científicas, da primazia da técnica e pelas dificuldades de o investidor pessoa física, muitas vezes leigo, jogar o jogo de profissionais — o mercado financeiro é um ambiente como qualquer outro; a técnica, o profissionalismo, a prática de anos, a pesquisa profunda e científica trazem vantagens importantes. Seguir um médico de terceira linha pode gerar problemas graves, mas a automedicação também não costuma ser um caminho profícuo.
Enquanto insistirmos em tratar os investimentos de forma infantilizada, seremos apenas crianças no tempo do “financial deepening” — as crianças sabem tudo, mas não ganham muito dinheiro.
P.S.: Analisado aleatoriamente diversas carteiras de pessoas físicas, há dois pontos muito claros de melhoria. O primeiro é o excesso de concentração — o sujeito quer começar a investir em Bolsa e compra quatro ações; a chance de isso dar errado é enorme. Em sendo o caso, melhor comprar um ETF ou um FoF de ações. O segundo, que poderia até ser interpretado como uma variação do primeiro ao representar excesso de concentração geográfica, é a falta de internacionalização dos portfólios. Ainda engatinhamos nesse escopo, mas, felizmente, temos visto alguns avanços importantes nessa área. XP e BTG Pactual (SA:BPAC11) Digital têm trazido vários fundos bacanas para se investir lá fora, o que acho salutar. Nesse sentido, vale muito a pena ver a live com André Esteves e Bill Ackman, cujo fundo agora está disponível na plataforma do BTG Pactual Digital para investidores qualificados a partir de R$ 10 mil. Chance rara de um importante amadurecimento patrimonial.