O título da tônica dessa semana parece óbvio, mas tenho escutado muito a respeito da aparente dissociação entre economia e mercado. Aquela ideia de que os preços de ativos (em especial ações) não condizem com o momento econômico vivido. Não preciso discorrer sobre os motivos (entenda-se corona), mas é um fato que temos desemprego alto, PIB em baixa, empresas quebrando e outros vários receios – aumento da inadimplência de famílias e empresas, insolvência fiscal do país, desarranjo político e por aí vai.
Mas é importante que o leitor e investidor saiba separar as coisas.
(i) UMA COISA É UMA COISA, OUTRA COISA É OUTRA COISA
Me desculpem a expressão chula, mas por vezes elas caem como uma luva aquilo que você quer explicar. Mercado e economia são como aquela expressão: “não confunda c* com bunda!”. Sim, estão perto um do outro; sim, andam juntos; sim, você não consegue separá-los…mas não são a mesma coisa! Vou citar aqui alguns fatores que são muito mais conectados a mercado.
Fluxo. Temos falado exaustivamente disso aqui nas últimas semanas…o que tem segurado e muito o mercado é a entrada de mais e mais pessoas/agentes no mercado. São os órfãos do CDI ou treasury nos EUA. Fundos de pensão, investidores, fundos, empresas, etc. O mercado é regido sob a égide da oferta e demanda. Mais pessoas demandando a um dado nível de oferta… BINGO! Temos aumento de preços.
Sentimento. O mercado é deveras influenciado por sentimentos no curto prazo. Inclusive, nos EUA temos dois acrônimos para descrever isso. FOMO – fear of missing out –, que na tradução seria algo como “medo de ficar de fora da festa”, em que investidores vendo preços subindo e notícias de ganhos aqui e acolá, saltam para o mercado para não perder tais ganhos. Outro acrônimo é o TINA – there is no alternative – slogan da Margaret Thatcher na década de 80 que hoje serve bem para explicar uma maior alocação em ativos de risco num cenário de taxas de juros tão baixas para outros ativos.
Valuation. Já comentei aqui em outra tônica sobre isso. Recapitulando: qualquer conta de valor justo de uma ação leva em conta o valor do dinheiro ao longo do tempo. Isso é resolvido através do uso de uma taxa de desconto. Pode ser por fluxo de caixa descontado, multiplo justos, gordon etc. Todos trazem fluxos futuros para o presente, descontados por uma taxa. Vejamos um exemplo de uma empresa que tem um ROE de 20%, cresce lucros a 7% aa. Considerando uma taxa de desconto de 15% , 12% ou 9%. Qual o múltiplo price-to-book (P/VPA) dela? Simples! P/B= (ROE – g) / (r-g)
A 15% temos: (0.2 – 0.07) / (0.15 – 0.07) = 1.63x
A 12% temos: (0.2 – 0.07) / (0.12 – 0.07) = 2.60x
A 9% temos: (0.2 – 0.07) / (0.09 – 0.07) = 6.50x
Diferentes taxas de desconto me levam a diferentes múltiplos justos! O mesmo vale para um calculo simples de um fluxo de dividendos de US$1 que cresce 5% aa, descontado por diferentes taxas.
A 15% temos: (1.o) / (0.15 – 0.05) = preço justo $10
A 12% temos: (1.0) / (0.12 – 0.05) = preço justo $14.3
A 9% temos: (1.0) / (0.09 – 0.05) = preço justo $25
O que estou querendo dizer com isso? Simples: se o mercado assume que a “nova” taxa de desconto para um determinado ativo é mais baixa… BINGO! Temos mais upside nele!
Então esses são três fatores de mercado que tem menor relação com as notícias que lemos por aí, de PIB em baixa e lockdown, e que ajudam a entender as altas atuais.
(ii) INDICADOR QUE INDICA ALGO
Sim, a economia é importante para o mercado, mas não é “o mercado”! Em mercado financeiro o que realmente importa são os chamados leading indicators – dados antecedentes que ajudam a ler o futuro da economia. A meu ver aqui que as coisas ficam bem turvas, porque nem sempre a indicação dada por um indicador macro garante um resultado no futuro e isso causa erros de interpretação. Mas é o jeito que o mercado olha! Nesse sentido, vou dar aqui uma pequena contribuição olhando alguns indicadores que me chamam a atenção.
Dados de emprego nos EUA têm mostrado uma forte recuperação, o que é positivo e refuta a ajuda a fomentar certo otimismo com a economia … no futuro. Se por um lado a crise gerou 22MM de desempregados, em dois meses foram “recriados” 7.5MM de empregos surpreendendo a todos considerando que a economia ainda está em certo lockdown.
O ISM Manufacturing PMI, que mede a atividade da indústria americana, superou com folga as previsões dos economistas alcançando maior aumento mensal em junho desde 1980, reforçando a ideia da recuperação em “V” da economia. O report completo é fonte da tabela abaixo que é um resumo do índice, com a conclusão: economia voltando a crescer em ritmo forte.
O mercado imobiliário americano é outro que vem supreendendo pela força. Mas e a crise? Parece que os tijolos não leem os jornais! Rs. Brincadeiras a parte, com taxas de juros baixas e a necessidade por mais espaço (talvez), mais americanos vêm buscando comprar ou financiar imóveis. De acordo com dados da Mortgage Bankers Association, os pedidos de hipotecas para comprar uma casa aumentaram 26% em maio. Na primeira semana de junho, os pedidos de refinanciamento aumentaram 11% e os pedidos para financiamento para compra de casas cresceu 15%. O gráfico abaixo até que parece um “V”, não?
Vendas no varejo. O último dado que temos é o de maio que saiu há três semanas. Apesar de já ser um dado “velho”, quando anunciado surpreendeu e muito! Economistas esperavam um crescimento de 8%, o número apresentado foi 17.7% sendo o maior já registrado na história, superando com folga o dado de outubro de 2001 (pós ataque às torres gêmeas). Fonte.
Confiança. O dado de confiança do consumidor na terça passada também mostrou melhora. Ainda longe dos níveis pré crise, mas indicando uma melhora e superando expectativas do mercado.
Outros indicadores também mostram alguma evolução, seja em maior ou menor medida. É o caso das reservas em restaurantes, número que talvez não foi maior por dois motivos: (a) restaurantes não estão em full capacity e operam a 50%, 75% da capacidade; (b) recente avanço do coronavírus.
As taxas de ocupação dos hotéis também vêm mostrando melhora. Seguindo o ritmo atual, em dois meses estaríamos de volta aos níveis pré-pandemia.
Análise do Google Mobility Trends sugere que as pessoas já não têm ficado tanto em casa. Ruim por um lado, obviamente. Por outro, reforça a ideia da economia retornando.
Mas poderia ter resumido esse monte de gráfico em apenas um, o que mede o nível de surpresas positivas que os indicadores econômicos carregam – o Citi Economic Surprise Index:
MAS E O BRASIL NISSO?
Não somos uma ilha e, se o mundo percebe uma melhora, cedo ou tarde isso tende a bater aqui. Nosso trabalho é não atrapalhar isso: algo em que na verdade não somos muito bons, mas enfim. O Brasil é uma economia cada vez mais dependente de China, portanto o que acontece lá é deveras importante para nós. Não vou adentrar nos números e indicadores da China, mas em suma os indicadores econômicos de lá já vêm surpreendendo pela ponta positiva por pelo menos dois meses (maio e junho).
“A China está claramente saindo rapidamente da epidemia da Covid-19. Todos os dados desde meados de fevereiro apontam para uma recuperação em forma de V”, disse, à CNBC, Michael Spencer, economista-chefe e de pesquisa para a Ásia do Deutsche Bank.
No Brasil ainda vemos os casos escalando, manchetes horrorosas e uma descrença na recuperação do país. Por outro lado, tivemos um dado de PMI medido pela Markit que surpreendeu positivamente. Palavras deles: “A pesquisa de junho com fabricantes brasileiros sinalizou um retorno ao crescimento da produção e de novos pedidos, quando os negócios começaram a recuperar dos efeitos adversos da doença por coronavírus. Confiança sobre o futuro também ganhou força de forma acentuada, atingindo uma alta de quatro meses”. Report completo.
O setor de serviços está longe de mostrar expansão e o último dado foi bem ruim. Todavia, a sinalização de redução no ritmo de contração é algo a ser pontuado.
E o varejo? Junho tem o maior volume de vendas do ano, diz a Receita. O crescimento chegou a 15,6% na comparação com maio e a 10,3% em relação ao mesmo mês do ano passado: link pra notícia.
Fora isso, na semana retrasada o Breno já havia postado uma série de indicadores de confiança mostrando recuperação. Posto aqui o de confiança do consumidor, a meu ver o mais diretamente linkado ao mercado.
Fora isso, acredito que quem assistiu à entrevista de ontem do ministro da fazenda Paulo Guedes vai entender que existe muito espaço para o Brasil crescer e que a economia está nas mãos da pessoa correta. Isso não é garantia de crescimento futuro, mas ao menos um alento e esperança – ou seja, o suficiente para o mercado.
Em suma
O que quero dizer é que existem dados que corroboram uma recuperação da economia. Muitos se apegam a notícias de jornal. Estou aqui tentando fazer um contraponto e buscando justificar que a dissociação de economia e mercado existe quando olhamos indicadores passados. O mercado tende a se apegar aos indicadores que indicam, apontam pra frente (ps: com perdão da redundância).
(iii) EXAGERADO
Mas não sejamos ingênuos. Eu mesmo tenho adotado uma postura de ceticismo e cautela aqui nas últimas tônicas porque sei que o mercado exagera…SEMPRE! Para baixo e também para cima!
Na minha opinião, temos atualmente:
Fluxo e questões de mercado ajudando a sustentar altas (ponto 1)
+
Alguns indicadores leading indicando alguma melhora/retomada
+
Exagero típico de mercado
(iv) IMPONDERÁVEL
Isso que comentei acima tem ajudado e pode sim continuar a ajudar a empurrar o mercado mais para cima. Ao mesmo tempo, ouço/leio um mundo de investidores/jornais/artigos apontando para um desarranjo total da economia. Não vou me aprofundar na análise porque acredito que são conhecidos. Em suma, eles convergem para o seguinte: receios com a expansão monetária gerando diversos descompassos macroeconômicos que cedo ou tarde serão corrigidos e de forma drásticas na opinião desses.
- Teremos inflação que puxará os juros
- Dólar perdera poder como moeda.
- EUA e Europa estão quebrados.
- Bolha em preços de ativos.
- Somente o ouro salva como reserva de valor
- Entre outros…
E a isso soma-se uma segunda ou terceira grave onda de coronavírus que afetaria ainda mais a economia. Minha resposta a tudo isso é uma admissão de TOTAL e COMPLETA ignorância ou incapacidade de prever qualquer coisa do tipo! Desde 2008 ouço sobre o balanço do FED. Desde 2010 ouço que China é uma bolha. Desde 2011 ouço que Europa está quebrada. Desde o primeiro shut-down das contas americanas ouço que os EUA estão quebrados… Enfim.
É possível que vejamos uma grave crise na frente… certamente!
É provável? Aí já não sei dizer.
A propósito, essa tônica foi escrita totalmente para mim que sou economista e muitas vezes, me esqueço dessa máxima: economia é uma coisa e mercado outra!
Era isso.
Aquele Abs.