Se a eficiência do capitalismo se deve à livre flutuação dos preços, determinados pelas forças do próprio mercado, qual será o efeito de se engessar o preço mais emblemático de todos: o preço do dinheiro?
A economia não pode ser estabilizada por decreto. Ela deve permanecer sensível a toda sorte de fatores e ter o dinamismo e a flexibilidade necessários para procurar um ponto de equilíbrio diante das múltiplas variáveis e pressões que surgem no decorrer do tempo e dos eventos.
No capitalismo, o livre mercado permite que os preços variem e funcionem como uma mão invisível que orienta e direciona investimentos, insumos, produção e consumo de modo mais eficiente. Preços são constantemente ajustados e reajustados pelo equilíbrio dinâmico entre oferta e procura de bens e serviços. Onde há liberdade de concorrência, os produtores, o comércio e os consumidores estão permanentemente interagindo e trocando informações, as quais se propagam embutidas nos preços. A livre flutuação destes permite o fluxo das informações que orientam e estabilizam o sistema, viabilizando um "consciente coletivo" que guia a economia.
Claro que o livre mercado não é a solução para tudo, nem é infalível ou possibilita recuperações imediatas. Mas as crises do capitalismo - pela sua própria natureza cíclica - não são aberrações, apenas parte inerente do processo econômico. As contrações permitem uma espécie de destruição criativa, que possibilita novos contornos para o mundo, reformulando a perspectiva e as expectativas das pessoas, reorientando a indústria, a atividade agropecuária e o surgimento de novas tecnologias, ideias e inovações - à custa da eliminação de tudo aquilo que começava a se mostrar obsoleto ou improdutivo.
No comunismo, o planejamento central usa sua autoridade para determinar preços, direcionar recursos, mão de obra e insumos, além de estipular cotas de produção. O planejamento central descarta a importância dos preços flutuantes e todo tipo de informações que estes proporcionariam eficientemente. O politiburo decide, presumindo-se sábio o bastante para definir o tamanho da produção e o consumo ideal conforme suas próprias metas e ideologias. Essa é uma terrível falácia do comunismo e do gigantismo governamental que, por todos os países onde se fez presente, resultou na falência econômica e na insatisfação popular. O planejamento central também abre brechas ainda maiores para favorecimentos ilícitos e corrupção - pior do que numa democracia capitalista.
Para quem traz a China na ponta da língua como argumento contrário, é bom esclarecer que a reviravolta econômica ocorreu graças ao pragmatismo de Deng Xiaoping, que no final dos anos 1970 começou a adotar práticas de livre mercado. O sucessor de Mao Tsé-Tung já criticava a agonizante produção de alimentos no sistema comunista. Empossado, rompeu com o sistema de comunas e criou incentivos através do arrendamento de terras. Também permitiu a mobilidade dos agricultores para que comercializassem sua própria produção. Sua reforma gerou uma verdadeira explosão na produção de alimentos.
Tendo estudado e trabalhado na França enquanto jovem, sua visão política e econômica já se distanciava do comunismo tradicional. Seus críticos alertavam que sua estratégia seguia em direção ao livre mercado. Muitos anos antes, na conferência de Guangzhou de 1961, Deng Xiaoping já havia se justificado: "Não importa se o gato é branco ou preto, o gato que agarra o rato é um bom gato"! E, a partir da agricultura, esse esperto líder chinês expandiu a abertura para a diplomacia e o mercado, atraindo investimentos e empresas estrangeiras para a China. Foi essa orientação que permitiu o descolamento da China em relação ao restante dos países comunistas - que atualmente já estão praticamente extintos ou falidos pelo rígido e inapto planejamento central.
O planejamento central inviabiliza a consciência coletiva do livre mercado, ou a mão invisível descrita por Adam Smith, ou mesmo o espírito animal citado por John Maynard Keynes. Só a livre precificação possibilita alocações mais eficientes de mão de obra, investimentos, recursos e produção.
O estado tem obviamente papéis importantíssimos! Entre eles, legislar, regular, fiscalizar, julgar, punir e fazer com que os incentivos para um setor privado mais dinâmico estejam presentes e sejam respeitados, garantindo a propriedade privada, os direitos autorais e evitando poderosos oligopólios ou monopólios. A proteção do meio ambiente, a fiscalização e o controle de poluentes são apenas mais alguns exemplos de papéis que devem ser desempenhados por agências governamentais.
Mas se a eficiência do capitalismo se deve à livre flutuação dos preços, determinados pelas forças do próprio mercado, qual será o efeito de se engessar o preço mais emblemático de todos: o preço do dinheiro?
Afinal, fora o escambo, o dinheiro deve estar presente em pelo menos um dos lados de TODAS as transações bilaterais (ou mesmo em ambos os lados da transação, no caso de operações de câmbio). Se os Bancos Centrais impõem taxas de juros a níveis absurdamente baixos, o sistema fundamental para a mais eficiente orientação de toda a economia fica comprometido. Um flagrante exemplo de planejamento central.
Basta vislumbrar as taxas de juros internacionais para ver que as informações relativas ao risco estão deliberadamente omitidas. E isso diante de enormes e -historicamente inéditas- incertezas econômicas, como altos níveis de endividamento público e privado, e megamudanças no perfil demográfico mundial - que trará sérias consequências para a seguridade social.
Se as taxas de juros atuais não transmitem -e mesmo ofuscam- essas importantes informações sobre o risco, quais serão as implicações futuras para a economia e a população mundial?
Os juros reais chegam a ser negativos: menores que a inflação! Ou seja, punem o poupador que investe na renda fixa. Juros baixos assim estimulam maior ousadia e abusos em ativos de risco, financiando bolhas especulativas em commodities, ações e títulos de dívidas estrangeiras - públicas e corporativas.
Observem no gráfico abaixo os juros reais nos EUA (de jan/1960 a abr/2014):
É possível observarmos os juros abaixo da inflação nos EUA em boa parte da década de 1970. A remuneração negativa provocou uma fuga de investimentos em renda fixa por lá. Vieram parar na América Latina a procura de investimentos mais arriscados. O dinheiro fácil de estrangeiros e de petrodólares (em alta) chegou, financiou, beneficiou e possibilitou o milagre econômico brasileiro. Marcou a época do governo militar e de nossas bazófias nacionalistas: "pra frente Brasil", "ninguém segura este país", "o país do futuro", "Brasil, ame-o ou deixe-o!"...
Acontece que, como o capital estrangeiro naturalmente não financiava o Brasil por amor, de fato viria a deixá-lo anos depois, quando as taxas de juros norte-americanas voltavam a subir! Rapidamente a dinheirama que ajudara o Brasil e a América Latina começou a voltar para casa e para a segurança dos títulos norte-americanos. Nosso país e nossos vizinhos, de ego inchado, preferiram a miopia otimista a enxergar que de fato não estávamos assim com essa bola toda. Era evidente que aquele farto financiamento não poderia durar para sempre. E a ficha caiu tarde demais. Então deflagrou-se uma crise de refinanciamento da dívida latino-americana.
As consequências foram desesperadas altas dos juros para atrair de volta os investidores, bem como uma progressiva impressão de dinheiro no Brasil e noutros países para se financiarem e quitarem seus compromissos. E, com a monetização das dívidas, a desvalorização do dinheiro criou uma espiral viciosa que culminou na terrível hiperinflação brasileira a partir da década de 1980. Obviamente, tanto os governos de direita como os de esquerda tomam como seus os méritos de quaisquer avanços, mas quando o descalabro acontece, consideram-se apenas vítimas - apontando o dedo para alguma maligna causa externa que lhes foge ao controle.
Uma análise mais responsável deveria mostrar que as políticas foram relaxadas durante os tempos de vacas gordas, evitando precauções contra os inevitáveis tempos de vacas magras em capital externo, que fatalmente surgiriam. O "milagre econômico" dos anos 1970 e a "inclusão social" a partir de 2003, termos respectivamente e orgulhosamente alardeados pelos governos militares latino-americanos e pelos governos de esquerda -de Lula, Hugo Chavez, Evo Morales e outros- ocorreram sim em grande parte devido a fatores externos, nomeadamente a liquidez internacional que aqui aportava temporariamente.
Os problemas de nossos países menos avançados só aparecem nus e vexados quando nossos primos ricos voltam a remunerar melhor seus próprios poupadores. Nossa hipocrisia política não vê, ou prefere não reconhecer as próprias e verdadeiras razões para a falta de sustentabilidade de nossos esporádicos avanços.
Os juros reais negativos nos EUA também contribuíram para o aumento nos preços do petróleo, culminando na crise do petróleo na década de 1970.
A partir de 2002, novamente vemos a relação entre os juros negativos nos EUA e o acelerado aumento dos preços do petróleo.
Depois do estouro da bolha "pontocom" (envolvendo empresas de tecnologia e internet) no ano 2000, houve o ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro de 2001. No rastro dessas duas crises tão próximas, o banco central norte-americano, empenhado em medidas anticíclicas, voltou a baixar exageradamente as taxas de juros nacionais. Como seria de esperar, os juros negativos iniciados em 2002 (indo até o final de 2005) voltaram a punir os poupadores conservadores da renda fixa e premiaram os investimentos arriscados. Propiciaram uma tremenda alta do petróleo, uma ascensão generalizada dos países exportadores de matérias primas e também esquentaram a mania especulativa no mercado imobiliário norte-americano. O resultado -por enquanto- foi o estouro de uma bolha imobiliária, de cujas enormes sequelas ainda não nos recuperamos.
Infelizmente, essa última crise imobiliária do subprime teve como resposta do FED, o já manjado clichê: uma exagerada baixa dos juros, negativando-os em termos reais. E já lá se vão seis anos assim!
Parece-nos pouco provável que as persistentemente reduzidas taxas de juros atuais, em tantos países importantes, não estejam inflando nesse momento outras temíveis bolhas financeiras... Bolhas especulativas que provavelmente já se encontram em estado bastante avançado. Resta-nos imaginar quando vão estourar, onde vão estourar primeiro e com que violência isso acontecerá...
A história se repetirá.
Até quando vamos fazer vista grossa para as consequências globais dessa polêmica forma de planejamento central que suprime a justa precificação do dinheiro e do risco? A história mostra a potencial virulência dessas manipulações com juros. E sua natureza é, no mínimo, estranha ao mais puro conceito de livre mercado.
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