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Série Especial: Reflação e Taxas de Juros Americanas

Publicado 16.05.2021, 22:17
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Este é o segundo texto da Série Especial "Inflação nos EUA: a Batalha entre Fed e Mercado"

O discurso anual do presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, em Jackson Hole em agosto de 2020, pode ser considerado um marco da mudança de paradigma da política monetária americana. Powell foi incisivo ao afirmar que não aumentaria a taxa de juros mesmo se a inflação ultrapassasse a meta de 2%. Essa era a regra até então, reagir assim que a inflação atingisse a meta, para evitar uma possível perda de controle, contaminação das expectativas e posterior espiral inflacionária.

A regra adotada nos últimos anos acabou gerando uma inflação observada em média menor do que a meta, o que retardou a recuperação econômica depois da grande crise financeira de 2008. Powell sinalizou que está propenso a tolerar uma inflação mais alta que a meta por algum tempo, compensando os períodos em que esta ficou abaixo da meta, de forma que a da inflação fique próxima da meta apenas na média de um prazo mais longo. Alguns analistas dizem que o nome mudou de “inflation targeting” para “average inflation targeting.”

A mudança é fundamentada na alteração da relação entre inflação e desemprego, com a diminuição da reação da inflação ao desequilíbrio entre oferta e demanda por trabalho, o chamado slack. Uma taxa de desemprego mais baixa tende a estar associada a uma inflação mais alta, mas não há aceleração posterior. É esse o motivo dos traders e economistas americanos passarem a adotar o termo reflação.

O termo reflação foi originalmente cunhado pelo economista Irving Fisher, considerado um dos pais da macroeconomia moderna, e consiste num aumento dos preços depois de uma deflação, aumento esse resultante das políticas expansionistas adotadas pelo então presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) para tirar a economia americana da Grande Depressão. Fisher defendia que esse aumento dos preços não significava que a inflação sairia de controle; aumentaria de patamar, mas depois se estabilizaria e não seguiria aumentando.

O artigo de Fisher de 1934 intitulado Reflation and Stabilization não poderia ser mais atual, tendo em vista que as políticas adotadas pelo agora presidente Joe Biden foram inspiradas de certa forma no New Deal de Roosevelt. Fisher explicava que o processo de espiral inflacionária, como o ocorrido na Alemanha entre 1921 e 1923, era mais uma exceção do que uma regra. Além disso, o autor mostrava que não havia perigo de uma emissão monetária gerar uma escalada inflacionária, e usava exemplos da própria economia americana, de 1885 e de 1920.

A história mostrou que Fisher estava certo, pois as economias americana e europeia viveram uma longa fase de inflação moderada, baixo desemprego e alta produtividade, a assim chamada época de ouro do capitalismo, durante as primeiras décadas do Pós Guerra.

O fenômeno da inflação alta somente apareceu no final da década 1960, quando trabalhadores americanos e europeus, fortemente sindicalizados e com bastante poder de barganha, impuseram um aumento significativo no custo unitário do trabalho. Essa pressão salarial veio posteriormente acompanhada de dois choques do petróleo devido ao uso do poder de mercado do cartel dos países produtores de petróleo (OPEP).

LEIA MAIS: Petróleo, Disputa e Atuação dos EUA: Contrastes Entre 1986 e 2020

Mas a profunda recessão mundial depois do choque de alta de juros de 1979, combinadas com as posteriores medidas de desregulamentação do mercado de trabalho adotadas na era Reagan (1981-1988) e a ameaça da competição das exportações industriais de países asiáticos (e mais recentemente chinesa) provocaram enorme queda do poder de barganha dos trabalhadores americanos. Para agravar a situação, a grande crise financeira de 2008 deixou uma cicatriz no mercado de trabalho americano, levando à saída de muitos trabalhadores da força de trabalho, refletida numa queda da taxa de participação de 66% para 63% em 2019, e para 61,5% com a crise da pandemia. Dessa forma, além de endividadas, muitas famílias viram a renda familiar diminuir com a saída de algum dos parentes do mercado de trabalho, sem conseguir retornar.

Com isso, a taxa de desemprego aberta passou a ser um indicador que não reflete adequadamente a situação do mercado de trabalho. O professor de Harvard Jason Furman calcula que uma taxa mais realista de desemprego (para abril de 2021) seria 7,6% e não os 6,1% da taxa de desemprego aberta usual. A situação dos desempregados a longo prazo também tem retratado essa fragilidade do mercado de trabalho americano.  Em março de 2021, 43,2% do total de desempregados estavam procurando emprego há mais de 6 meses. Este valor atual está em um patamar próximo ao recorde, ocorrido em 2010 (45,5%), e corresponde a mais do que o dobro do valor de antes da crise de 2008 (20%).

Fisher também estava correto ao argumentar que o aumento da emissão monetária não geraria inflação durante a recuperação. Isso ficou claro com as medidas de quantitative easing adotadas pelo Fed depois da grande crise financeira de 2008, que aumentaram a base monetária e não vieram acompanhadas de aumento da inflação. Pelo contrário, essas medidas podem ser um instrumento para reduzir os juros longos, com a recompra de títulos de longo prazo pelo Fed.

No quadro atual, a autoridade monetária americana pode manter a taxa de juros básica em nível estimulativo por um período relativamente longo. Mas, se o Banco Central americano decidir aumentar a taxa de juros de curto prazo, provavelmente não fará nada drástico, e os juros ainda oscilarão em torno de um patamar baixo em termos históricos.

Uma inflação salarial um pouco mais alta seria considerada até mesmo desejável para a própria execução da política monetária, para afastar levemente a taxa de juros nominal do nível atual praticamente igual a zero. Mas vale ainda notar que, a longo prazo, um pacote voltado para a infraestrutura e formação e treinamento da força de trabalho tem potencial de gerar ganhos de produtividade capazes de atenuar qualquer pressão salarial sobre os custos.

Quantos aos reflexos sobre as taxas de juros de longo termo, é preciso antes de tudo tomar a perspectiva histórica e observar uma tendência de queda contínua desde os anos 1980, mesmo quando descontada a inflação. Do ponto de vista macroeconômico, essas taxas longas passaram a década de 2010 inteira em patamar baixo. A taxa de 10 anos alcançou o valor mínimo de 0,62% em julho de 2020 e é natural que torne a subir, como ocorreu em recessões anteriores. O valor atual próximo de 1,7% significa uma taxa real negativa, quando descontada a inflação observada (-2,4%) e, portanto, pode subir mais.

Do ponto de vista das finanças, qualquer mudança de centésimos nessas taxas pode levar a perdas patrimoniais significativas. Dessa forma, esse cabo de guerra entre o mercado e o Fed vai continuar, com a tentativa do mercado de precificar a reflação. Mas, passado o impacto imediato da reflação sobre as taxas de juros, uma vez que não há aumentos ulteriores da inflação, a tendência é de uma evolução moderada e gradual.

Confira os outros textos anteriores da série: 

Texto 1: O Debate Global Sobre Inflação, por Roberto Padovani

 *Júlia Braga é professora da Faculdade de Economia da UFF.

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