Poucas vezes, no passado recente, o quadro político exerceu uma influencia tão negativa sobre o cenário econômico: o destempero do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que regrediu de uma postura já canhestra, incompatível com a liturgia do cargo, para uma contestação aberta aos limites constitucionais, mobiliza a atenção de todos e oblitera qualquer ação meritória da área econômica.
De fato, a CPI da pandemia - que nasceu para averiguar a baixa prioridade dada pelo governo na contratação de vacinas - encontrou evidências de um tratamento no mínimo irresponsável na condução das contratações. Ficou claro que o Ministério de Saúde era comandado por elementos de reputação questionável do Centrão, sugerindo fortemente que normas éticas limitadoras da ação dos executivos federais foram ignoradas. No clima de desalento que caracteriza todo processo recessivo, a suspeita de corrupção era a última gota que poderá ruir os fundamentos que levaram à eleição de Bolsonaro; agora, não se trata apenas de um chefe de governo que tolera violências contra o meio ambiente, desrespeita direitos humanos, antagoniza os demais Poderes da República, nomeia alguns desqualificados para o primeiro escalão e acolhe medidas adversas à contenção do coronavírus. Tudo somado, cabe perguntar: o que sobrou de bom neste governo?
Sobraram os avanços na economia. Mas, neste clima político pesado, tudo de positivo que se conquistou na modernização e gestão da política econômica passa despercebido.
Colunistas não se dão ao trabalho de lembrar que o país enfrentou o vácuo econômico decorrente da pandemia com a mesma ousadia e precisão das melhores gestões, mundo afora. Inegavelmente, a rede de proteção lançada às famílias e empresas foi fundamental na mitigação do desastre humano que nos assolou e foi responsável pela rápida regeneração da atividade econômica.
Mais: este expansionismo fiscal do ano passado rapidamente foi compensado por uma volta à trilha da austeridade, neste ano. Em paralelo, o Banco Central trocou a postura acomodatícia do ano passado por uma agressiva elevação de taxa de juros nos últimos meses, até excessiva, mas objetivando manter a confiança no compromisso anti-inflacionário da Autoridade Monetária. Projetos importantes foram aprovados no Congresso, após anos de hibernação nos escaninhos do Parlamento.
Destaque louvável foi iniciar a reforma tributária pela eliminação da maior distorção do nosso sistema, reduzindo a tributação sobre lucro das empresas e substituindo-a por imposto crescente sobre os mais abonados. Há décadas que se clama por esta correção, sem que governos da esquerda ou da social-democracia ousassem enfrentar os poderosos. Guedes encampou esta batalha, um ano antes da próxima campanha presidencial, uma heterodoxia respeitável e inédita na nossa tradição do quem pode mais, chora menos.
Nada de bom que venha da área econômica é aplaudido, dado o pântano institucional que Bolsonaro vem-nos mergulhando. Exemplos: o consenso, ao final de 2020, era de um crescimento próximo a zero neste ano; saiu o dado do primeiro trimestre, as revisões apressadas para cima proliferaram, mas com uma pitada de descrédito no médio prazo; o endividamento público era projetado chegar a cerca de 100% do PIB, mas os dados recentes sinalizam menos, cerca de 80% e o mérito foi atribuído à inflação, não à austeridade; enfrentamos o juro de curto prazo mais alto do mundo, os preços no atacado perdem o ímpeto, mas a crítica é de que o Banco Central está correndo atrás da inflação. Até companheiros de seita de Paulo Guedes apressam-se a criticá-lo, decretando que tudo é muito pouco, errado ou tardio.
Contudo, há um derrapada do Ministro que não pode passar batida: a rolagem dos precatórios de 2022. Que um governo queira carrear recursos públicos para projetos populares meritórios está dentro da regra do jogo, ainda que com sabor populista. Claro, desde que o gasto adicional seja compensado por cortes em outros programas ou aumento de impostos. Mesmo uma venda adicional de títulos públicos, se a capacidade de endividamento permitir, seria admissível. Qualquer destas medidas induziria reação contrária dos prejudicados, mas um sadio debate democrático definiria uma resultante consensual.
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Mas o Governo pisou nos tomates, ao decidir financiar o gasto extra no Bolsa Família com o postergamento dos precatórios que vencem em 2022. Refutar unilateralmente uma dívida reconhecida pelo Judiciário em última instância tem nome certo: calote. E não há capitalismo moderno, com pano de fundo institucional de borracha: segurança jurídica é a pré-condição para que famílias tomem suas decisões de poupar e empreendedores aceitem correr o risco de seus negócios.
O argumento de que o Governo foi pego de surpresa é frouxo, pois o judiciário brasileiro opera a ritmo de jaboti; se falha houve, foi imprevidência do Executivo.
Se insistir nesta excrecência, a área econômica terá trazido sua triste contribuição ao esfacelamento institucional que este governo está tentando promover, aduzindo ao despautério da defesa do voto impresso, da ameaça de sair das “quatro linhas” constitucionais e mantendo a taxa cambial politicamente pressionada, apesar de estarmos vivendo o melhor desempenho das nossas contas externa em todos os tempos.