Uma das principais belezas dos criptoativos é a possibilidade de serem descentralizados e, assim, serem uma reserva de valor, plataformas digitais e meio de pagamento independente de governos e empresas. De maneira geral, a descentralização é razoavelmente ameaçada por uma série de fatores – conversão para dinheiro fiduciário corrente e mineração concentrada baseada em hardware especializado, por exemplo – mas continua sendo um valor frequentemente debatido na comunidade. Muitos associam o próprio surgimento do Bitcoin a uma desconfiança em relação ao sistema financeiro global. Prefiro não especular, porém a potencialidade das criptomoedas parece bem condizente com esse ethos.
No entanto, a tecnologia e, principalmente, o hype das criptomoedas atraem governos. O Banco da Inglaterra já estudou a emissão de criptomoeda própria, a Venezuela lançou uma moeda virtual atrelada ao petróleo, e mesmo no Brasil se considerou uma criptomoeda nacional ligada ao BNDES. Um relatório da União Europeia recentemente emitido retomou a possibilidade, meses após seu parlamento votar que regulariam mais atentamente criptomoedas.
Apesar de não ligadas politicamente, as medidas têm uma relação forte. O motivo para a regulação é evitar evasões de divisas e financiamento de atividades ilegais, como tráfico de drogas e terrorismo. Um dos papéis do Estado é, efetivamente, cuidar da segurança nacional e, argumentam os políticos, traz maior necessidade de monitorar transações financeiras anormais. Nesse caso, exigir cadastros em exchanges é uma medida que visa identificar a entrada de pessoas no mercado de criptoativos. O objetivo, no fim, é acabar com a possibilidade de transações ilegais feitas de maneira anônima. Para saber se algo é ilegal, entretanto, é preciso acabar com a anonimidade, o que permite ver transações de pessoas normais.
Uma blockchain típica consegue salvar dados sem reversabilidade, e isso evita double spend. O grande problema é quando esse grande livro contábil está disponível a governos. Uma criptomoeda estatal daria um grande poder do governo saber das nossas vidas. Não existe uma grande entidade benevolente conhecida como “O Estado”, e sim uma organização política composta por diversas pessoas – de políticos, indicados, burocratas e pessoas que estão lá por algum motivo. Por mais que confiemos em algo no governo, dar margem para indivíduos dentro de uma organização terem tanto poder não é razoável.
Como exemplo, há o judiciário brasileiro e sua discricionariedade no uso da lei. Atualmente, basta um juiz de primeira instância para haver bloqueio de algo importante como o whatsapp. Há atualmente a instituição da quebra do sigilo bancário, ou seja, bancos não podem divulgar para o governo suas contas a menos que haja a atuação de um terceiro órgão para isso; mesmo assim, há mais quebras de sigilo e congelamentos que alguns juristas consideram correto. Na ausência de bancos, essas atividades seriam ainda maiores e haveria maiores chances para participantes mais mal-intencionados do governo usarem informação sensível contra pessoas. Isso para não falar nas ilegalidades: em 2010 houve vazamentos de dados da receita federal usada contra políticos de oposição, por exemplo. Imaginem no impacto disso quando houver granularidade das transações correntes?
Com tudo isso, creio que dar ao governo essas informações e poder não é adequado. Pode haver estados mais razoáveis que o brasileiro, porém eles também podem ser falhos, como Edward Snowden revelou, e não há grandes vantagens decorrentes do uso de uma criptomoeda pelo governo. Alguns argumentam que possibilitaria a taxa de juros negativa (resolvendo a chamada zero-lower bound), porém isso é pouco perto da privacidade. As inovações governamentais das criptomoedas devem ser observadas com maiores ressalvas, porque parte da utilidade delas – descentralização e direitos de saída – se perde com governos e há ganhos pífios.