Sábado foi o grande dia do chamado “Reward Halving”, quando a recompensa por bloco minerado caiu pela metade. Segundo o protocolo do Bitcoin, a cada quatro anos, em média, a recompensa da mineração sofre uma redução de 50%. Iniciou-se com 50 bitcoins por bloco, caindo para 25 em novembro de 2012 e, agora, a partir do bloco de número 420.001, a recompensa passa a ser de 12,5 bitcoins.
A remuneração da mineração, ou a criação de novos bitcoins, diz respeito a algo fundamental do sistema de dinheiro eletrônico P2P: ela é a política monetária do Bitcoin. Toda emissão de novos bitcoins ocorre por meio desse processo. As unidades de bitcoins com perfeita divisibilidade entram em circulação dessa forma. Assim é regulada a oferta monetária do sistema. Não há nenhum outro meio de aumentar a quantidade de moeda no Bitcoin.
Contrastada com a política monetária das moedas estatais, a do bitcoin é a verdadeira antítese.
Primeiro, não há discricionariedade alguma: a taxa de emissão está definida desde a gênese do protocolo, sendo uma regra pétrea do sistema. O que guia a política monetária dos bancos centrais modernos são metas (de inflação de preços, emprego, etc.), não estando estes limitados a alterar a quantidade de moeda como bem querem. Por isso, quantitative easings, injeções de liquidez e similares são a norma nas moedas estatais. Isso quando se trata de países desenvolvidos, pois, em países não tão sérios na questão monetária, imprime-se dinheiro para financiar diretamente a esbórnia dos governos.
Segundo, os bitcoins são emitidos de forma descentralizada e competitiva: não há um órgão, um ente ou um indivíduo responsável por criar novos bitcoins com capacidade de direcioná-los à vontade. No Bitcoin, existem inúmeros “bancos descentrais” competindo pela recompensa. No dinheiro estatal, há um banco central monopolista com vários bancos criadores de moeda (uma façanha do sistema de reservas fracionárias) – mas somente instituições com a devida autorização do BC podem atuar nesse sistema.
Em terceiro lugar, o protocolo determina uma taxa de emissão decrescente. Isso significa que, a cada contração da recompensa, a taxa de inflação é reduzida, até chegar o momento em que o estoque de moeda não mais será alterado – a ideia subjacente é emular a oferta de uma commodity escassa como o ouro. O nível de emissão de moedas estatais, contudo, tem sido historicamente inflacionário, com surtos de alta inflação e momentos de moderação. Mas a norma dificilmente é infringida: a inflação monetária é uma constante no sistema de bancos centrais.
Quarto, o processo de criação de novos bitcoin é absolutamente transparente. Todo e qualquer usuário pode monitorar e verificar se a regra está sendo cumprida. Violar a taxa de emissão de bitcoins é praticamente impossível. O que dizer do sistema monetário vigente? Que ente consegue efetivamente vigiar os bancos centrais? Há décadas eles são basicamente livres para criar moeda, injetar liquidez, contratar linhas de swap com seus pares estrangeiros, e tudo em um ambiente de pouca – ou nula – prestação de contas. Nada ilustra melhor essa realidade que as ações do Federal Reserve e demais bancos centrais de países desenvolvidos durante e após a crise de 2008.
Quinto, a mineração de bitcoins é um processo custoso e capital-intensivo. A validação de transações e as tentativas ininterruptas de resolução da Prova de Trabalho (Proof-of-Work) demandam investimento em maquinário especializado e energia elétrica. Assim como a mineração do ouro tem um custo alto, a emissão de novos bitcoins também requer dispêndio de capital.
Nada poderia ser mais díspar que o funcionamento dos bancos centrais modernos, capazes de emitir moeda a um custo desprezível ou até mesmo nulo. Operações de mercado aberto compram ativos do sistema bancário com dinheiro criado do nada por meio de um simples comando de computador. Hoje, para imprimir moeda, nem mesmo papel e tinta são mais necessários. Toda injeção de liquidez é digital.
Em sexto lugar, e por fim, sendo imutável a política monetária da criptomoeda, os agentes podem antecipar perfeitamente o que ocorrerá com a oferta de dinheiro digital. Não há sustos nem surpresas. Todos sabem com precisão como se comportará a emissão de bitcoins durante toda a vida do sistema. Para usar um termo bastante em voga no mundo dos banqueiros centrais, a política monetária do bitcoin propicia uma “orientação futura” (forward guidance) com exatidão cirúrgica.
Essa realidade é diametralmente oposta ao paradigma atual das autoridades monetárias que, sob a liderança do Fed, adotam a “orientação futura” como uma das principais ferramentas para o cumprimento de seus mandatos. Sinalizando ao mercado o que se pretende fazer no futuro, ajustam-se as expectativas e as ações dos agentes. Essa é a teoria por trás da coisa.
Acontece que na prática a sinalização de intenções futuras mais desorienta que coordena. Primeiro, porque os próprios banqueiros centrais mudam o curso e o discurso a esmo. Segundo, dado o dinamismo da economia, frequentemente as autoridades monetárias são surpreendidas pelo desenrolar dos eventos e pela conjuntura, obrigando-as a descartar as “orientações futuras” passadas, optando por uma mudança de rumo não prevista.
Incerteza e insegurança quanto ao futuro são as consequências da estratégia de “orientação futura” e do poder discricionário da política monetária estatal. Em vez de acalmar, a autoridade causa apreensão. Não espanta, portanto, a enorme expectativa do mercado com cada nova ata das reuniões dos comitês de política monetária (FOMC nos EUA, COPOM no Brasil). Examina-se minuciosamente cada palavra, cada vírgula, na vã tentativa de desvendar o que não foi dito, interpretar o que foi, para poder prever o que poderá ser feito.
A orientação futura da política monetária do Bitcoin, porém, está dada desde seu nascimento e é criptograficamente inflexível. Ao contrário do que pensam os economistas e banqueiros centrais, isso é de fato uma virtude.
Afinal, para o sucesso de uma moeda privada que não tem respaldo de nenhuma lei de curso legal, as características de sua política monetária são essenciais. Dito de outra forma, para uma moeda que não goza do privilégio de ser forçosamente aceita pelos indivíduos, ela tem de ter propriedades muito atrativas para ser espontânea e livremente demandada.
Isso nos remete a uma velha crítica dos economistas com relação à moeda digital: a tal da falta de lastro. O que as moedas estatais têm hoje é apenas o lastro governamental, isto é, um marco legal que criminaliza a mera recusa do papel-moeda nacional em transações de mercado, obrigando, na prática, todo cidadão a usar o dinheiro do governo impreterivelmente.
Esse arranjo, contudo, não assegura uma moeda boa, apenas que até uma moeda ruim tenha vasta aceitação no mercado. Isso porque o lastro estatal não promete uma oferta monetária inelástica; na verdade, garante unicamente uma demanda mínima.
Nós demandamos dólares ou reais não por causa, mas a despeito da constante perda de poder de compra. Não por causa da inflação monetária, mas apesar dela.
O que aconteceria se a política monetária da criptomoeda fosse indefinidamente – e altamente – inflacionária? Será que os indivíduos se sujeitariam voluntariamente a manter saldos de caixa em bitcoin? Será que tratariam esse ativo como uma potencial reserva de valor?
Uma coisa podemos predicar: o homem prefere mais a menos, abundância a escassez. Em termos monetários, dentre duas moedas, o homem tende a escolher aquela que mais bem mantiver o poder de compra, aquela que valer mais no futuro.
O êxito do bitcoin não está apenas na enorme redução dos custos de transação – e essa é uma parte essencial da equação, inegavelmente. De fato, o bitcoin decolou porque indivíduos se sentiram tentados, instigados, incitados a estocar um ativo inusitado, porém, com propriedades extraordinárias, sobretudo a sua oferta limitada, com taxa de emissão decrescente. Indivíduos voluntariamente investem em bitcoin a despeito da ausência de qualquer espécie de curso legal.
A natureza deflacionária do bitcoin – dado um estoque finito e uma demanda crescente, o poder de compra da moeda tende a aumentar – foi simplesmente vital para a sustentação e ampliação da segurança do sistema. De que forma? Basicamente porque ela é uma parte indissociável do círculo virtuoso do Bitcoin. Explico.
Com a expectativa de valorização futura, investidores aumentam a demanda, elevando a cotação do ativo no mercado. Um preço maior significa uma recompensa mais valiosa, isso naturalmente atrai mais mineradores, mais força computacional (hash power), provendo maior segurança à rede, tornando o sistema ainda mais valioso, o que, por sua vez, incentiva mais investidores e usuários a adotarem o bitcoin, aumentando a demanda pela moeda, pressionando a cotação para cima, atraindo mais mineradores e assim por diante – a interdependência de todos os elementos do sistema é de uma genialidade ímpar, todas as partes estão harmonicamente interligadas.
Por todos esses motivos, a regra de emissão de bitcoins é um dos principais atributos da política monetária estabelecida pelo protocolo.
Especialmente neste momento da economia mundial, em que as ações extraordinárias dos emissores das moedas de reserva parecem não surtir os efeitos desejados, a rigidez da política monetária do bitcoin passa a ser vista com muito mais atenção e até mesmo apreço.
Porque, deliberadamente ou não, a verdade é que os banqueiros centrais estão se esforçando para minar a confiança nas moedas estatais e, em última instância, fazer despencar a demanda por elas. Nesse cenário, a migração para uma moeda apolítica será tão natural quanto inevitável.