Ao escrever um artigo acadêmico sobre Internet das Coisas, recentemente me deparei com algo que já percebia, mas sem grande comprovação: há um paradoxo a respeito da privacidade. Quase todos nós declaramos nos importar com isso, mas há pouca ação no sentido de preservar dados individuais. Quase todos estamos conectados a redes sociais com poucas ressalvas, uma grande maioria dos usuários da internet não contrata serviços de VPN, e há muitos mais indícios da presença desse paradoxo.
Uma interessante pesquisa voltada para Internet das Coisas – mercado do criptoativo IOTA – mostra que o principal determinante para as atitudes a respeito de consumir um objeto que captura dados individuais ou se conectar a uma rede é o benefício direto e indireto do objeto, pouco importando questões associadas à privacidade. Meta-análises – isto é, estudos condensando os resultados de outros estudos – mostram o mesmo paradoxo para o uso de redes sociais. Parecemos viver num mundo onde a privacidade é demanda meramente discursiva.
Entretanto, há duas questões latentes na aplicação direta dessa análise. A primeira é que os bens de IoT e redes sociais tendem a ser relativamente monopolistas porque, no caso do primeiro, se trata de uma inovação, o que garante uma colocação única no mercado por algum tempo; no caso do segundo pelas chamadas externalidades de rede. A privacidade pode não ser determinante nesse caso, porém no caso da existência de um segundo bem que atende ao desejo por privacidade, o primeiro não-comprometido com esse ideal sofrerá perdas mercadológicas quase que certamente.
Creio que, portanto, seja possível tirar lições para as chamadas privacy coins. O primeiro fato é que elas provavelmente não terão grande parcela do mercado se sua única proposta de valor for a privacidade em si. Há ressalvas naturais para essa afirmação – por exemplo, impactos de regulação excessiva levando a busca de ativos irreguláveis – mas creio que privacidade no contexto regulatório atual seja um motivo fraco considerando as evidências científicas sobre o tema.
A segunda lição é que, no entanto, ao incorporar tecnologias de privacidade, projetos atuais com outras propostas de valor tendem a se diferenciar. O Ethereum, por exemplo, possui uma pesquisa extremamente interessante em incoporar a ZK-SNARKS – tecnologia da ZCash – a seus sistemas de maneira opcional. Com a adição de tecnologias como Sharding e Plasma, poderá haver blockchains secundárias na Ethereum que garantem a privacidade. Uma vez implementadas essas tecnologias em combinação às de privacidade, por mais que o core do Ethereum não as deseje mais por qualquer motivo, haverá a possibilidade de forks. Nesse caso, a privacidade continua possível em redes cujo objetivo é outro. Essas tendências permanecem ainda mais fortes com o atual desenvolvimento em interoperabilidade de blockchains, onde “forks privacy” podem ser criados rapidamente para tarefas que privacidade é demandada e quase instantaneamente ligados a blockchains convencionais.
Pode-se concluir que a privacidade ainda será alvo de debates, porém não será um diferencial maior de algum criptoativo qualquer de sucesso. Tecnologias como Monero, ZCash e similares possuem valor por seus desenvolvimentos de fronteira nesse segmento e pela atual falta de concorrentes; contudo, essa tendência pode não ser permanente. Como costumo argumentar, as escolhas de consumo muitas vezes são feitas com critérios de suficiência, não de valor absoluto. Consumidores fora de nichos precisam de uma tecnologia suficientemente privativa, não da criptografia mais segura e inquebrável nessa direção. Com a adição de tecnologia suficiente aos concorrentes, possivelmente essas moedas precisarão se reinventar, pondo desafios aos seus retornos de longo prazo. Pretendo falar dessas possibilidades na próxima coluna.