Em seu primeiro dia de mandato, o presidente Joseph Biden assinou uma pilha de decretos executivos para reverter as ações do seu antecessor Donald Trump. A ausência mais notória nessa pilha foi o cancelamento das sanções às exportações de petróleo do Irã ou pelo menos algum alívio ao país que está há dois anos submetido à campanha de “pressão máxima" de Trump.
A Secretária do Tesouro, Janet Yellen, disse ao Senado na mesma semana que pretendia rever todas as políticas de sanções dos EUA, a fim de garantir que estivessem sendo aplicadas de forma correta e eficaz. Quanto ao Irã, Yellen disse que o governo estava comprometido a assegurar que a República Islâmica “tomasse as medidas necessárias” para cumprir seu programa nuclear. Ela enfatizou ainda:
“O Irã terá um alívio nas sanções do plano conjunto de ação se cumprir as restrições nucleares. Além disso, se confirmado, vou garantir que o Tesouro continue seu importante trabalho de combate ao apoio que o Irã tem dado ao terrorismo e a violações de diretos humanos".
Apesar da retórica, poucos acreditam que será negado ao Irã o alívio das sanções que busca em Washington. A questão é a rapidez com que isso vai acontecer e qual será seu impacto na oferta e nos preços do petróleo.
O plano de ação conjunto é um acordo de 2015 firmado entre Estados Unidos, Reino Unido, China, França, Alemanha e Rússia para conter as ambições nucleares do Irã.
O pacto da era Obama prevê basicamente o assentimento do Irã em abster-se de construir uma bomba atômica capaz de ameaçar o mundo (leia-se: Israel). Em troca, pode exportar seu petróleo com pouca ou nenhuma restrição. Como Trump retirou os Estados Unidos do acordo em 2018 e aplicou sanções ao petróleo iraniano, Biden ainda precisa colocar Washington novamente no pacto e encerrar oficialmente as ações. É assim pelo menos que as coisas deveriam acontecer.
Mas não estão acontecendo. Teerã já está exportando parte do seu petróleo, segundo as autoridades do país. O pior é que, concomitantemente, pode estar enriquecendo urânio ao nível usado em armas.
As exportações petrolíferas do país persa superaram 600.000 barris por dia (bpd) pela primeira vez desde abril, segundo dados da empresa suíça Petro-Logistics, em reportagem da Bloomberg. Somente em janeiro, suas remessas de petróleo cresceram de 30.000 para 50.000 bpd, conforme dados da SVB International, consultoria de Washington, embora não houvesse certeza sobre a venda desses barris extras a refinarias ou se era um movimento de antecipação a vendas.
Ainda se sabe pouco sobre as exportações petrolíferas do Irã
As autoridades de Teerã indicaram que aqueles números eram apenas uma fração da atividade real que estava acontecendo no país. O vice-ministro do petróleo iraniano, Amir Hossein Zamaninia, afirmou que a produção poderia atingir os níveis pré-sanções em dois meses. A produção atingiu o pico de cerca de 4 milhões de bpd antes das restrições de Trump. Ao mesmo tempo, o ministro do petróleo Bijan Zanganeh disse que Teerã “estava perto de registrar o maior recorde de exportações de produtos refinados da história durante o período de embargo”.
Nem o ministro nem seu vice se pronunciaram sobre o enriquecimento nuclear. Os líderes iranianos afirmam que suas atividades nucleares são pacíficas. Mas poucos fora da República Islâmica acreditam nisso.
Também é difícil saber se Zamaninia e seu chefe estão dizendo a verdade sobre o petróleo, embora uma coisa seja certa: essa bravata não teria sido possível na era Trump. Qualquer pronunciamento desse tipo desencadearia um grande escrutínio de qualquer país que tentasse ousar desafiar as ações americanas e entrar em conluio com o Irã, gerando represálias tanto ao comprador quanto ao vendedor.
Mas, como Biden está totalmente imerso no combate à Covid-19 e na restauração econômica, o Irã obteve passe livre para vender seu petróleo. Ou talvez não.
No fim de semana, a Indonésia apreendeu dois navios de bandeira iraniana e panamenha que estavam ilegalmente transportando petróleo em suas águas territoriais. A história se encaixa bem no jogo de gato e rato que os iranianos fizeram com o governo Trump por mais de dois anos: transferências entre embarcações, empresas de fachada e sinais de satélite desligados, mesmo modus operandi empregado pela Venezuela, outro grande produtor de petróleo submetido à campanha de “máxima dor” impingida por Trump.
Pode ser que Biden seja compelido a jogar duro contra a Venezuela por causa do seu regime ditatorial, mas essa já é outra história. Politicamente, sua reticência com o Irã é compreensível: Não lhe cai bem aplicar rigidamente as políticas de Trump, principalmente por serem radicalmente diferentes.
Isso abre espaço para que o Irã busque abertamente clientes para o seu petróleo e bata à porta de um velho amigo: a China.
A China era a maior importadora de petróleo condensado do Irã antes da entrada em vigor das sanções de Trump em 2018. E, por um longo período depois disso, as refinarias chinesas continuaram fazendo transações secretas com exportadores iranianos, usando os métodos clandestinos descritos acima.
China não vê a hora de comprar o petróleo iraniano
Um operador de petróleo de uma corretora europeia com experiência em transações de barris iranianos para o mercado chinês disse que esse óleo “salgado” (com alto teor de enxofre) era ideal para pequenas refinarias no hub de Shandong. Sob condição de anonimato por causa da sensibilidade do assunto, o operador afirmou o seguinte:
“Esses acordos estão sendo feitos agora mesmo enquanto conversamos. Tanto o petróleo do Irã quanto o da Venezuela são o tipo de óleo que as pequenas refinarias chinesas precisam. Devido às sanções de Trump, essas refinarias vinham comprando petróleo americano e misturando-o a outras frações para produzir derivados. O petróleo iraniano não gera esses problemas para eles. Além da qualidade, também é muito mais barato do que o óleo dos EUA. Adicione a isso a lógica de remessas e armazenamento na mesma região, e não é necessário muito para perceber que o óleo iraniano é o preferido dos chineses”.
O Irã quer muito mais do que apenas recuperar seus mercados. O ministro Zanganeh pressionou os Estados Unidos nesta semana a retornar ao pacto nuclear, prometendo que Teerã cumpriria sua parte se as ações sobre seu petróleo forem levantadas.
O Irã tem boas razões para fazer essa promessa. A interrupção das restrições restauraria a legitimidade das suas remessas petrolíferas, sem qualquer penalidade para os compradores. O mais importante é que isso reabrirá linhas importantes de crédito a Teerã fechadas pelo Departamento de Estado e o Tesouro no governo Trump.
A Casa Branca, em vista da sua própria agenda, afirmou que não espera uma decisão rápida sobre Teerã. Tony Blinken, Secretário de Estado de Biden, afirmou que havia um “longo caminho” para que o governo retornasse ao pacto nuclear e consultaria Israel e os estados do Golfo antes de agir.
Mesmo assim, a realidade pode forçar Washington a agir mais rápido do que se espera. E o catalisador provavelmente será o programa nuclear do Irã.
Segundo o Washington Post, um relatório da Agência Internacional de Energia Atômica do mês passado afirmou que o Irã começou a trabalhar nos equipamentos necessários para produzir metal de urânio, que pode ser usado para fabricar ogivas nucleares.
Isso representa mais uma violação do país ao plano conjunto de ação. No mês anterior, o Irã disse que havia voltado a enriquecer o urânio a 20% em suas instalações de Fordow, o que o colocaria próximo do enriquecimento necessário para obter uma arma nuclear, que é de 90%.
É necessária uma ação urgente sobre o programa nuclear iraniano
Omid Nouripour, membro do comitê de assuntos exteriores do parlamento alemão, afirmou que a eleição presidencial iraniana em junho poderia colocar no poder um novo governo mais alinhado ao círculo interno do seu líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei, que tem a última palavra em todas as decisões-chave. Nouripour disse ainda:
“O tempo está acabando. Todos os dias em que não nos falamos e não há inspeções, as centrífugas operam cada vez mais rápido”.
Mikhail Ulyanov, representante permanente da Rússia nas organizações internacionais em Viena, também pediu que os participantes do plano de ação agissem rápido.
Ulyanov alertou que Teerã poderia encerrar até 21 de fevereiro seus compromissos perante o Protocolo Adicional e o Acordo de Salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica. Isso “reduziria drasticamente as chances de inspecionar a situação do programa nuclear iraniano", concluiu. O pedido russo para um acordo com o Irã não surpreende pelo fato de sempre ter atuado como um “grande irmão” de Teerã, nos esforços de Moscou de equilibrar os interesses americanos no Golfo.
Diplomaticamente, será difícil postergar demais as demandas iranianas. A República Islâmica ainda está ressentida com o assassinato do seu general Qassem Soleimani por ordens de Trump há um ano, bem como com a morte do seu principal cientista nuclear, Mohsen Fakhrizadeh, que foi atingido em novembro por uma arma de controle remoto que, segundo Teerã, teria sido disparada por Israel e um grupo exilado de oposição. Antes disso, em 2019, o Irã foi acusado de planejar um ataque a campos petrolíferos da Arábia Saudita e pela derrubada de um drone americano. As potências mundiais estão preocupadas com a volta da beligerância do Irã.
Se os Estados Unidos retirarem suas sanções sobre o país, a expectativa é que Teerã tente retomar suas exportações diárias de 2 a 2,5 milhões de bpd perdidas durante a era Trump.
Será interessante ver como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) lidará com a questão, já que o Irã é membro do cartel.
Preços do petróleo se recuperam após cortes da Opep
Depois de nove meses de cortes de produção, os 13 membros da Opep e seus 10 aliados sob os auspícios da Rússia conseguiram restaurar os preços pré-pandemia dos barris de WTI e Brent para US$ 52 e US$ 55 respectivamente. O otimismo com as vacinas contra a Covid-19 também contribuiu.
Se o Irã adicionar mais um milhão de barris à oferta mundial de petróleo, praticamente neutralizará o impacto dos cortes adicionais de mesmo volume anunciados pela Arábia Saudita para fevereiro e março.
O chamado “corte surpresa” dos sauditas fez com que o petróleo saltasse US$ 5 neste mês. Tudo leva a crer que essa manobra tem a ver com um possível arrefecimento das sanções dos EUA sobre o Irã. Esse prêmio deve se evaporar caso os EUA avancem no Acordo Nuclear 2.0 com o Irã, ou seja, os preços do barril de petróleo podem se desvalorizar US$ 5 assim que as tratativas forem anunciadas.
Mas os preços do petróleo podem contar com o suporte de curto prazo dos planos de estímulo de Biden para combater a Covid-19.
Os aspectos técnicos do mercado podem favorecer bastante o petróleo.
Sunil Kumar Dixit, analista técnico de commodities em Kolkata, Índia, afirmou o seguinte sobre o óleo americano:
“Um movimento sustentado acima de US$ 53,80 pode fazer o mercado buscar US$ 57 e US$ 62. Essa dinâmica está em jogo neste momento no petróleo”.
Oferta pode ser equilibrada, mas Irã não se comprometerá
O fator Irã também pode ser temporariamente compensado pela retomada das hostilidades na Líbia, outro membro-chave da Opep, que viu sua produção de petróleo e condensados disparar para cerca de 1,25 milhão de bpd no início deste mês, seu nível mais alto em mais de seis anos, após um cessar-fogo. Mas a situação Líbia é bastante dinâmica, de modo que suas exportações petrolíferas podem voltar ao mercado com as negociações.
Também é possível que os sauditas anunciem cortes mais profundos da sua própria produção para balancear o mercado. Mas isso terá seu preço: cada corte de barril significa uma parcela de mercado perdida para um rival. Se bem que a posição de influência saudita na Opep seja incontestável, a questão é por quanto tempo o país vai se sacrificar em nome de um grupo que mostra pouca aderência aos compromissos firmados.
O certo é que, após mais de dois anos e meio das sanções de Trump que praticamente destruíram sua economia, o Irã não vê a hora de maximizar sua produção e exportação na tentativa de se recuperar. Por isso, não deve se esforçar por cumprir qualquer compromisso com a Opep, principalmente vindo da Arábia Saudita, que ficou ao lado de Trump durante toda a campanha de “máxima dor”.
Ann-Louise Hittle, estrategista da consultoria de energia Wood Mackenzie, disse sucintamente:
“O Irã é um ‘elefante na sala”".
Eu seria mais preciso: Na sala do petróleo.
Aviso de isenção: Barani Krishnan utiliza diversas visões além da sua para oferecer aos leitores uma variedade de análises sobre os mercados. O analista não possui posições nos ativos e commodities sobre os quais escreve.