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O Papel dos títulos da dívida pública na gestão financeira dos estados

Publicado 26.10.2023, 19:21

Os estados, para adquirirem recursos financeiros necessários, utilizam duas principais modalidades: a tributação e a emissão de títulos de dívida. A tributação é o meio pelo qual os estados compulsoriamente recolhem receitas dos cidadãos e empresas, mediante a aplicação de impostos sobre diversas fontes de renda, tais como o imposto de renda, o imposto sobre vendas, o imposto sobre a propriedade e outros similares. Esses impostos constituem uma fonte regular e vital de receita que subsidia uma variedade de serviços públicos, como educação, saúde, infraestrutura e segurança. Por outro lado, a emissão de títulos de dívida é um instrumento utilizado pelos estados quando há necessidade de captação de recursos adicionais para financiar projetos de grande envergadura, para arcar com as despesas governamentais quando apenas a tributação não é capaz de suplantá-las ou quando um governo não quer ter o custo político de envergar um projeto de aumento da tributação, uma vez que o custo político de tal medida é muito alto. Esses títulos representam, essencialmente, empréstimos concedidos por investidores, incluindo instituições financeiras, fundos de pensão e indivíduos. Em troca do capital obtido por meio desses empréstimos, o estado compromete-se a remunerar os investidores com juros ao longo do tempo e a efetuar o pagamento do valor principal no momento do vencimento dos títulos. Alguns países, como o Japão, possuem leis que estabelecem estritamente que "a emissão de títulos de dívida governamental é usada apenas em certas circunstâncias e é emitida para cobrir os gastos que os impostos não foram capazes de fazer" (Antideficiency Act). Já falei sobre o impacto da transação desses títulos nos juros futuros, que afetam a economia como um todo, sendo usados como "benchmark" para todos os tipos de contratos, e como sua taxa de juros é afetada tanto pela oferta primária (expectativas dos investidores refletidas em taxas aceitas em leilões) quanto pela oferta secundária (oferta e demanda dos títulos materializada no fenômeno de marcação a mercado). Existem países que não conseguem arcar com suas obrigações com sua dívida pública, isso acontece por dois motivos:

1) Quando um país abusa de sua capacidade de se financiar via emissão de títulos de dívida pública e, por algum aparato legislativo, existe algum limite estabelecido para o tamanho da dívida suportado, o país pode paralisar seus serviços públicos não essenciais até que a discussão no Congresso resulte em uma nova lei orçamentária para a condução dos negócios públicos. Esse é o caso dos Estados Unidos e de alguns outros países que possuem um limite rigoroso preestabelecido para a manutenção saudável e democrática da dívida pública, e se chama "shutdown".

2) Quando um país deixa de cumprir suas obrigações de pagamento de uma dívida, como juros ou principal. Em outras palavras, ocorre quando o devedor não paga a quantia devida no prazo acordado no contrato de empréstimo ou títulos de dívida. Argentina (1982, 1989, 2001 e 2014), Grécia (2012), Venezuela (2017), Equador (2008) e a Rússia (1991), são alguns países que já apresentaram quadros de default da dívida pública. Importante ressaltar que mesmo em um quadro de default, muitos países ainda conseguem arcar com suas dívidas, ou a maior parte delas, através da rolagem de dívidas ou do afrouxamento quantitativo. A rolagem de dívidas é um processo no qual um devedor, que pode ser uma pessoa, empresa ou governo, paga uma dívida existente ao obter um novo empréstimo ou emitir novos títulos de dívida para cobrir o pagamento da dívida anterior que está vencendo. Em vez de quitar a dívida original com seus próprios recursos ou reservas, o devedor utiliza o novo financiamento para pagar o montante devido. O processo de rolagem precisa ser bem esquematizado, pois o devedor corre o risco de entrar em uma espiral de dívidas impagáveis e/ou ser considerado um péssimo pagador e não conseguir taxas menores para rolar sua dívida. No afrouxamento quantitativo, que já falei por aqui antes, o Banco Central compra ativos no mercado aberto (neste caso, títulos da dívida pública) com dinheiro recém-criado. Esse processo, quando utilizado para auxiliar o governo a pagar aos seus credores, chama-se monetização da dívida. Reitero aqui que esse procedimento deve ser feito com muita cautela, uma vez que ele aumenta sobremaneira a base monetária e estimula a falta de sobriedade na condução da dívida pública, e seus efeitos podem ser dos mais adversos, uma vez que expandir a base monetária sem o contrapartida do aumento na atividade ou na capacidade produtiva da economia SEMPRE gera inflação.

Feitas as devidas observações, devo reiterar, mais uma vez, como a captação desses recursos dos títulos da dívida pública se torna materialmente o financiamento das operações do governo:

1) Emissão de títulos/Venda de títulos na oferta primária: o Tesouro Nacional, através de diretrizes específicas e planos de financiamento da máquina pública, emite títulos de vencimentos e indexadores específicos nos leilões de oferta primária. Nesses leilões, as instituições participantes, através das expectativas de inflação e, consequentemente, das expectativas de política monetária, calculam o risco/retorno destes títulos, incluindo nessa equação tanto os aspectos macroeconômicos e microeconômicos, quanto aspectos característicos do emissor (se tal país é de fato um "bom pagador", e se o é, o quanto de juros se cobrará como prêmio de risco para segurar este título?). Quando o Tesouro vende esses títulos, que são comprados em sua maioria nos leilões de oferta primária pelas instituições financeiras, fundos de previdência e fundos de investimento, ele já consegue angariar o seu desejado financiamento.

2) Trocas no mercado secundário: uma vez que os detentores destes títulos já estão em posse dos mesmos, eles podem escolher mantê-los e resgatar o valor nominal do título mais os juros subjacentes a ele no seu vencimento, ou maturação (redemption), ou podem vender o título a outras pessoas/instituições interessadas em comprar títulos da dívida de determinado país. Essa troca de títulos no mercado secundário tem um peso específico sobre o custo da dívida que o país terá de arcar para custear o seu financiamento inicial, uma vez que a oferta e demanda de títulos no mercado gera o fenômeno de marcação a mercado, que pode alterar sobremaneira o preço nominal de um título, quanto os juros pagos pelo governo para custear o seu financiamento, que são os juros (yields) dos títulos. Portanto, o banco central pode entrar nessa equação para tentar amenizar o serviço da dívida arcada pelo governo, comprando os títulos e fazendo a sua oferta diminuir (diminuindo a sua taxa de juros) e injetando liquidez na economia ou simplesmente fazendo operações, tanto de redesconto como de repo/reverse repo com garantias (colaterais) de títulos da dívida, isso auxilia o governo a pagar as suas dívidas, pois essas operações "obrigam" os seus participantes a comprarem esses títulos e venderem/comprarem do banco central, ou seja, esses títulos serão comprados de qualquer maneira, e o fato de terem sido comprados já faz sua oferta diminuir, uma vez que a demanda por eles está sendo estimulada por tais operações, fazendo assim, seus juros caírem, tornando mais branda a manutenção e o pagamento do serviço da dívida quando amortizada mensalmente.

Portanto, vemos agora a importância da manutenção e da eterna vigilância que um governo deve se atentar aos fenômenos dos títulos da dívida pública, não só no leilão de oferta primária (que é onde ele realmente consegue o financiamento desejado), mas também no mercado secundário, pois é nele onde o serviço da dívida será definido, e se o Tesouro emite muitos títulos sem a coordenação da política monetária e fiscal com o banco central, o serviço da dívida cresce, e logo o país poderá não conseguir arcar com suas obrigações. Portanto, é sempre essencial coordenar as políticas monetárias com as políticas fiscais. Qualquer dia vou escrever algo sobre o tema por aqui. Importante ressaltar também que a emissão de títulos da dívida, quando com contrapartida de investidores, não acarreta no aumento de meios circulantes e, consequentemente, da inflação, mas sim quando emitido sem nenhuma contrapartida, quando monetizada pelo banco central através de quantitative easing.

Agora, com tudo isso que dissertamos por aqui, vamos analisar o estado da dívida pública brasileira (DPF/Setembro/2023):

1) A emissão de títulos em setembro foi de R$ 79,7 bilhões e os resgates acumularam R$ 323,9 bilhões. As emissões líquidas, que são as emissões menos os resgates, acumularam o valor negativo de R$ 244,199,84 bilhões. A emissão líquida de títulos da dívida pública, somada à diminuição das emissões quando comparadas com o mês de agosto (R$ 93,64 bilhões). Isso pode indicar que o governo não está tendo tanta necessidade de angariar financiamento via títulos públicos, uma vez que estão planejando aumentar a carga tributária e, planejando arrecadar mais via tributação (fator esse que pode ser perigoso, uma vez que devem se atentar às condições já apresentadas por Laffer, uma vez que o aumento da carga tributária não representa materialmente o aumento da arrecadação). Além disso, o governo pode não estar emitindo tantos títulos por não haver demanda para isso no mercado, uma vez que as instituições financeiras estão posicionadas principalmente em bonds americanos, ativos seguros que estão pagando por volta de 5% de rendimento ao ano, portanto, uma emissão desacelerada poderia aumentar a oferta desses títulos no mercado, aumentando também a taxa de juros paga para financiar essa dívida. Outra abordagem também seria não vender muitos títulos para estimular a liquidez na economia, fazendo os investidores aplicarem seu capital em outros ativos mais despojados, que se beneficiariam com o corte da Selic e dinamizar a conjuntura econômica interna.

2) O estoque da DPF diminuiu nominalmente 3,02% de agosto para setembro. A diminuição foi fruto de maiores resgates somados com menores emissões, como citado acima, além disso, o Tesouro reportou que teve apropriação positiva de juros, no valor de R$ 49,7 bilhões. A apropriação positiva de juros se dá quando o Tesouro paga menos juros aos detentores de seus títulos do que recebe de suas próprias aplicações. O PAF (Programa de Ajuste Fiscal) de 2023 estabeleceu um limite mínimo para o estoque da DPF de no mínimo R$ 6,4 trilhões e máximo de R$ 6,8 trilhões. Atualmente, o estoque da DPF é de R$ 6,075 trilhões (em agosto a DPF estava em R$ 6,265 trilhões).

3) 20,65% dos vencimentos de títulos ocorrem nos próximos 12 meses, ainda dentro das métricas estabelecidas pelo PAF para 2023, que são no mínimo 19% e no máximo 23%.

4) O custo médio da dívida (serviço da dívida), que o governo arcará para o pagamento dos juros do seu financiamento inicial cresceu em setembro, de 10,53% para 10,58%. Ainda não representa um problema muito grande, mas controlar o serviço da dívida é algo essencial para não acabar entrando em uma situação fiscal ruim, como acontece hoje nos Estados Unidos, onde a dívida pública é um problema, não tanto pelo seu tamanho (que já é gigantesca), mas pelo seu serviço, já que os Estados Unidos não estão muito bem adaptados a manutenção da dívida por juros tão altos.

5) A Reserva de Liquidez, ou popularmente "colchão da dívida", que representam as disponibilidades em caixa destinadas exclusivamente ao pagamento da DPF, somadas ao saldo em caixa dos recursos oriundos da emissão de títulos (títulos emitidos recentemente), caíram de agosto para setembro, principalmente devido ao grande resgate que houve neste mês. O Índice de Liquidez, que mede a quantidade de meses subsequentes que o Tesouro é capaz de arcar com suas obrigações com o dinheiro da Reserva de Liquidez subiu, de 7 meses para 9,5 meses, também fruto do grande pagamento de resgates em setembro.

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