Os últimos eventos de extremos climáticos registrados em todo o mundo neste ano e o recente relatório do IPCC provaram que a mudança climática não é mais uma ameaça distante. Seus efeitos estão acontecendo agora e em tempo real e soja e pecuária são, historicamente, os maiores vetores de desmatamento no Cerrado e na Amazônia. Para que se consiga reverter este cenário, é fundamental que recursos com prazo e custo compatíveis ao fluxo de caixa das atividades cheguem ao produtor rural. Neste cenário, o setor financeiro é parte da equação que incentiva produtores a manter excedente de vegetação nativa em suas propriedades, equação esta que inclui ferramentas de transparência e monitoramento, ação coletiva de governos, exigências generalizadas de investidores e acesso a mercados.
Nos últimos tempos, o setor financeiro começou a olhar o tema com mais atenção. Mas, para que esse esforço não se perca, é fundamental ouvir a perspectiva dos produtores e incorporá-la na estruturação de produtos.
No início deste ano, a The Nature Conservancy (TNC), em parceria com Markestrat, ouviu na forma de uma pesquisa estruturada sojicultores e pecuaristas no Cerrado e na Amazônia sobre o tema. Não foi surpresa constatar que há diferenças relevantes de perfil que precisam ser consideradas na criação de produtos financeiros que tenham por objetivo fomentar a produção de commodities associada ao não desmatamento. Como o objetivo da pesquisa era identificar quais produtos financeiros incentivariam práticas de zero desmatamento, a segmentação baseou-se em aspectos comportamentais dos produtores. Após entrevistas quantitativas e qualitativas, três perfis foram identificados sem que houvesse diferenciação entre pecuária e soja: Tradicional; Em transição e Progressista.
O grupo caracterizado nesta pesquisa como Tradicional representou 22% da amostra e inclui pequenos e médios produtores em estágios iniciais de profissionalização, o que está diretamente associado a um nível de gestão básico, com menor utilização de controles e menor clareza dos das métricas financeiras associadas ao seu negócio. Desta forma, estão mais distantes do setor financeiro, já que os bancos os veem como um perfil de maior risco e o grupo é menos tolerante aos processos inerentes ao crédito, vendo o empréstimo como um grande processo burocrático que coloca em risco o patrimônio dado em garantia. Como exemplos de financiamento típicos para este grupo estão máquinas, implementos e itens para construção de armazéns, além da aquisição de insumos.
Sua disposição para compromissos ambientais está mais orientada a apenas seguir a legislação vigente. Para avançar nos quesitos preservação/recomposição de áreas de preservação permanente (APPs) e reservas legais (RL), além do exigido por lei, o segmento tradicional precisa ter clareza de que o saldo da operação será positivo para o seu negócio. A simplicidade na estruturação dos mecanismos é fundamental para que o grupo se comprometa e avance, e os benefícios devem ocorrer no curto prazo.
O segmento “Em transição”, que representou 62% da mostra, é composto, primordialmente, por produtores médios e grandes que buscam linhas para intensificação da produção, recuperação de pastagens, implementação de sistemas integrados de lavoura e pecuária e já entendem ser necessário avançar em práticas de preservação ambiental. Apesar disso, este produtor ainda não visualiza a mudança de comportamento do mercado comprador. Sendo assim, seu grande motivador é o benefício financeiro imediato.
O incentivo ao avanço em práticas mais sustentáveis para o grupo deve contar com linhas de financiamento que tenham vínculo direto com o aumento de renda no negócio, seja por meio de benefícios imediatos ou pelo reconhecimento do mercado de um produto de origem diferenciada. Nesse sentido, a triangulação com empresas de insumos, tradings e outros parceiros comerciais do produtor, em modelos inovadores, é altamente aderente.
O grupo Progressista (17% da mostra) caracteriza-se por grandes e médios produtores em estágio avançado de profissionalização. Neste grupo, nenhum produtor tem déficit de APP ou reserva legal e mais de 30% têm excedente. Conscientes de que a manutenção de vegetação nativa e uso de práticas mais sustentáveis tendem a ser cada vez mais valorizados pelo mercado, o grupo tem maior predisposição a investir apostando em ganhos e competitividade futura – sem exigir um benefício financeiro no curtíssimo prazo. Este grupo busca formas e modelos de produção nos quais a preservação de vegetação nativa se traduza em retorno financeiro sustentado no tempo. Entre seus objetivos de financiamento estão os investimentos em eficiência hídrica, certificação da propriedade e produção, além da digitalização como ferramenta para intensificação da produção.
Em função de seu porte e estágio de profissionalização, este grupo tem maior acesso ao sistema financeiro, sendo o foco principal dos bancos. Uma característica relevante desse grupo é a predisposição a investimentos em práticas de preservação de vegetação nativa em função das externalidades positivas que essas geram ao negócio, como selos de produção sustentável, bem estar animal e até mesmo prêmios na precificação. Sem contar a maior valorização da propriedade, com solos férteis, nascentes de água preservadas e biodiversidade nas áreas de vegetação nativa.
Levar a esse perfil de produtor mais do que linhas de financiamento, mas propostas inovadoras em termos de modelos de negócio e práticas agrícolas que favorecem a preservação, parece ser uma estratégia de sucesso. Esse segmento é motivado e pode, inclusive, ser parte de estratégias de avanço com os outros dois segmentos, configurando-se como agente motivador. Seu alto envolvimento com parceiros comerciais, associações e grupos de trabalho do setor, entre outras entidades, justifica o engajamento em iniciativas sustentáveis de sucesso.
Dessa forma, a depender do segmento de produtores em que credores queiram fomentar a produção de commodities associada ao não desmatamento, vale um cuidadoso desenho da oferta de crédito, desde a concepção do produto financeiro, bem como estratégias de comunicação, incentivos ou prêmios, contrapartidas ambientais e parcerias que impulsionem a contratação dos financiamentos. Ao incentivar a produção de soja e pecuária em propriedades comprometidas com manutenção de toda a sua vegetação nativa, agentes financeiros estarão contribuindo para evitar a mudança climática e perda de biodiversidade, enquanto contribuem para a segurança alimentar.
Autores:
Anna Lucia Horta (TNC)
Luciano Thomé e Castro (Markestrat)
Tassia Gerbasi (Markestrat)
Patricia Milani (Markestrat)