A resistência do presidente Donald Trump em reconhecer a derrota nas eleições começa a incomodar o mercado financeiro, esfriando o otimismo quanto a novos estímulos nos Estados Unidos. O risco de uma crise constitucional, judicializando o processo eleitoral, e a dúvida sobre se o republicano vai mesmo deixar a Casa Branca elevam a cautela, desencorajando os investidores.
E esse imbróglio político na maior democracia liberal do mundo realça o fato de o governo brasileiro ser uma máquina de criar problemas para além da maior crise do século que o país enfrenta. As disputas mesquinhas e atitudes excêntricas do presidente Jair Bolsonaro, a forma usual do cada vez mais “bolsonarista” ministro Paulo Guedes de usar hipérboles para qualquer coisa e a falta de ação do Congresso antes do pleito municipal, no domingo, cansam os negócios locais.
Por mais que sejam próximas a zero as chances de Trump reverter o resultado conhecido no último sábado, comprovando fraude em votos e erros de contagem suficientes para derrubar a liderança de Joe Biden em meia dúzia de estados-chaves, o mercado vai se dando conta da estratégia. O republicano quer sustentar a influência do chamado “trumpismo” dentro do partido e, ao mesmo tempo, lançar dúvidas quanto à legitimidade da presidência do rival democrata, desestabilizando a cena política no país.
E isso pode dificultar as negociações entre a Câmara e o Senado em torno de um novo pacote fiscal e outras medidas de estímulo, ainda mais considerando-se o fracasso nas tratativas antes das eleições do último dia 3. A disputa na ala norte do Capitólio segue indefinida e vai depender do desfecho na Geórgia para garantir (ou não) uma maioria democrata no Congresso. Mesmo assim, os republicanos avançaram na ala sul e conquistaram mais cadeiras, diminuindo a influência do partido de Biden na Casa.
A eleição nos EUA será oficialmente decidida quando o colégio eleitoral certificar os votos, em meados de dezembro. Antes disso, as apurações nos estados devem ser finalizadas e os casos judiciais precisam ser resolvidos, com a posse de Joe Biden e Kamala Harris prevista para 20 de janeiro. Até lá, Trump vai mostrar o exímio jogador que é na política, relutando até o limite do tempo e sustentando a poderosa narrativa de uma eleição roubada, sem nenhuma vontade de desistir nem de promover uma transição pacífica do cargo.
Em ruínas
Todo esse cenário em Washington pode precipitar a derrocada político-econômica do império, ao colocar em xeque um sistema eleitoral de mais de 200 anos em um momento em que a maior economia do mundo tenta frear a ascensão da China como potência global. Tal desconforto lá fora eleva o tom dos ruídos políticos em Brasília, onde os discursos de Bolsonaro enfraquecem o compromisso com o “teto dos gastos” e atrapalham o andamento das reformas e das privatizações, com o presidente só de olho em 2022.
Por mais que os dados recentes sobre a atividade doméstica e o desemprego tenham destacado a necessidade de reformulação do Bolsa Família, ampliando o alcance do programa social de modo a contemplar boa parte dos 40 milhões de “invisíveis” socorridos pelo auxílio emergencial, cabe ao Executivo e à equipe econômica encontrar espaços no Orçamento para manter tal benefício, sem elevar a desconfiança sobre o rumo das contas públicas. Mas até aqui, as propostas sofreram resistência dentro do próprio governo.
Diante dessa situação econômica frágil e com o presidente mais focado em temas de menor relevância, como disputas com o governo paulista, ou minimizando problemas graves, como a prolongada primeira onda da covid-19 por aqui, o mercado doméstico não deve mais dar o benefício da dúvida em relação à questão fiscal. Até porque, se há um risco de hiperinflação, como frisou Guedes, não se deveria insistir no “mix” de juro baixo e dólar alto para rolar a dívida pública de forma insustentável na ausência de um rigoroso ajuste fiscal.
E ainda tem a pandemia
Com a cena política no centro do palco, os investidores fogem dos ativos de risco, diante das preocupações com o rumo das eleições presidenciais nos EUA. O ressurgimento de casos da covid-19 no país, dobrando o número de infecções diárias para a casa de 200 mil menos de uma semana após atingir a marca sombria de 100 mil registros em 24 horas, e a falta de um novo pacote de ajuda às empresas e famílias também pesam.
Assim, os índices futuros das bolsas de Nova York amanheceram no vermelho, porém as perdas são moderadas. Na Europa, a força da segunda onda de contágio do coronavírus, com a Itália se tornando o décimo país no mundo e o quinto do velho continente a ultrapassar a marca de 1 milhão de casos da doença, preocupa os investidores, que já vislumbram um duplo mergulho da atividade, sob a forma de “W”.
Na Ásia, a sessão também foi de perdas, diante das renovadas preocupações com a pandemia e as idas e vindas quanto ao desenvolvimento de uma vacina eficaz. Nos demais mercados, o dólar perde terreno para as demais moedas rivais, o que favorece a investida do preço do barril de petróleo para além da marca de US$ 40. Já o juro projetado pelo título norte-americano de 10 anos (T-note) segue acima de 0,9%.
Por aqui, os ativos devem operar com mais prêmio de risco, com o real tendo dificuldade em se juntar à festa da fraqueza do dólar e os intermináveis ruídos e instabilidades políticas encurtando o fôlego de alta do Ibovespa. O aparente retorno dos investidores estrangeiros à Bolsa deve ser visto com parcimônia, com o Brasil caminhando para o abismo, diante da dificuldade para financiar a dívida pública, do aumento da inflação e da perda de tração da retomada econômica.
Atividade em destaque
Dados de atividade no Brasil e no exterior recheiam a agenda econômica desta quinta-feira. Por aqui, é a vez de conhecer o desempenho do setor de serviços em setembro (9h), que deve dar continuidade à recuperação engatada nos últimos meses, registrando a quarta alta mensal consecutiva. Ainda assim, as perdas de quase 20% acumuladas sob impacto da pandemia não devem ser anuladas.
Ontem, os números do varejo brasileiro abaixo do esperado deixaram a sensação de que a recuperação econômica doméstica vem perdendo tração, à medida que a atividade entra na fase de normalização, sem forças para manter ou acelerar o ritmo recente de avanço. A redução e o possível fim do auxílio emergencial combinados com o aumento da inflação e a prolongada onda de contágio de coronavírus no país ameaçam a retomada econômica.
Lá fora, a zona do euro informa, logo cedo, o desempenho da produção industrial. Já nos EUA, saem o índice de preços ao consumidor (CPI) em outubro e os pedidos semanais de auxílio-desemprego feitos no país, ambos às 10h30, além dos estoques semanais norte-americanos de petróleo bruto e derivados (13h), que foi adiado para hoje por causa do feriado pelo Dia dos Veteranos ontem, e do orçamento do Tesouro em outubro (16h).