Recentemente, o "fã de esportes", como é conhecido o telespectador da ESPN no Brasil, foi pego de calças curtas com o anúncio da saída de um dos principais narradores da emissora, o saudoso Rômulo Mendonça.
Dentre os vários bordões consagrados pelo narrador ao longo da última década, um dos mais amados pelo público é o “JARARACAAAA! TSSSS, TSSSS”, em homenagem ao jogador de basquete do Golden State Warriors, Stephen Curry.
O que boa parte do público de basquete não sabe é que o veneno do Curry nos arremessos de 3 pontos foi tão grande que ultrapassou o esporte e se tornou parte de um dos assuntos mais polêmicos do mercado financeiro: a Hipótese dos Mercados Eficientes (EMH).
Caso você não tenha nenhum conhecimento prévio sobre basquete ou eficiência dos mercados, te garanto que os próximos parágrafos vão ser o meio mais didático para você aprender sobre os temas.
E vai aqui um spoiler… mercados eficientes versus mercados ineficientes são quase tão polêmicos quanto "biscoito versus bolacha". De um lado, os defensores da Hipótese do Mercado Eficiente (EMH, em inglês), como Eugene Fama, e do outro os críticos comportamentais da EMH, como Daniel Kahneman.
Por sorte, no centro estamos nós, apaixonados por mercado, esporte e, claro, por uma boa dose de fofoca. Sendo assim, vamos deixar a enrolação e partir para o que interessa.
Quando tudo era mato
Nossa história começa lá na década de 60, quando tudo isso aqui ainda era mato e os gestores de portfólio não tinham muita noção do que estavam fazendo. Na verdade, a Teoria Moderna (NASDAQ:MRNA) do Portfólio, criada por Harry Markowitz, já havia sido inventada, mas era tão popular quanto o 3º goleiro da seleção da Bolívia.
Esse senhorzinho aí da foto chama-se Eugene Fama. Ao contrário da imensa maioria do mercado financeiro na época, ele não só conhecia como via um enorme potencial na teoria desenvolvida por Markowitz na década de 50.
Fama gostava tanto desses estudos quantitativos sobre o mercado, que resolveu se aprofundar no tema. Entre os anos de 1960 e 1964, ele participou do programa de Doutorado da University of Chicago e, acredite, isso mudou completamente o mundo das finanças!
A tese de Doutorado dele, “O Comportamento dos Preços do Mercado de Ações”, foi uma completa reviravolta. A partir dela foi possível responder uma pergunta que pairava há décadas: “até que ponto os preços das ações no passado podem prever os preços das ações no futuro?”
Até esse ponto, investidores e analistas ao redor do mundo tentavam detectar, nos preços anteriores das ações, padrões geométricos que mostrassem uma tendência. Esse tipo de análise, chamada de análise técnica ou gráfica, presumia que a história se repetia. Em outras palavras, eles acreditavam que padrões de mudanças nos preços passados se repetiriam no futuro e ao identificá-los seria possível prever o preço de uma ação e ganhar muito dinheiro.
Porém, em sua tese de Doutorado, Fama sugeriu uma hipótese de passeio aleatório para o preço das ações. Em uma analogia com a loteria, ele sugeria que o fato de determinados números aparecerem no passado não significava que estivessem mais ou menos propensos a aparecer no futuro.
Ele conseguiu mostrar, no que chamou de “detalhe nauseante”, que o modelo de passeio aleatório era válido e nenhum desses esquemas de previsão funcionaram 100% quando aplicados nos retornos diários do Dow Jones 30 entre 1958 e 1962.
Fama concluiu que “a leitura de gráficos, embora possa ser um passatempo interessante, não tem valor real para o investidor de mercado de ações”.
Ele também descobriu que a distribuição dos retornos das ações ficou parecida com o gráfico de uma distribuição normal de probabilidades, só que com caudas mais grossas. Isso significa que em diversos dias houve ganhos ou perdas diários mais extremos do que o esperado pela distribuição normal.
A consequência dessas descobertas é que dadas as caudas mais grossas, os retornos das ações são muito mais arriscados do que preveem os modelos de distribuição normal utilizados.
É muito bom termos isso em mente, porque há uma mística no mercado de que essas caudas grossas são uma violação da EMH, mas na verdade elas fazem parte do modelo de Fama.
Outro ponto que precisa ficar claro é de que essa imprevisibilidade dos retornos das ações em nada tem a ver com o formato da distribuição dos retornos das ações. Na verdade, a explicação para esse fenômeno viria do trabalho seguinte de Fama, a famosa “Efficient Markets Hypothesis” (EMH), tratada aqui como a Hipótese dos Mercados Eficientes.
Mercados Eficientes
A parte mais famosa do trabalho de Fama é a EMH. Um mercado eficiente é aquele em que o preço real de um título, ou seja, aquele preço que aparece na tela do home broker, sempre será uma boa estimativa do preço justo. A grande consequência da EMH é que se ela for verdadeira, então os preços das ações são justos e não devemos perder tempo tentando superar o mercado.
Mas calma, torcedor investidor! Com o passar das décadas, o cenário mudou, novos testes empíricos foram realizados e boa parte dos defensores da EMH afrouxaram as regras de definição.
Agora, eles não acreditam que os mercados sejam perfeitamente eficientes a todo momento e em todos os lugares. A tese atual é de que na maioria dos casos, estamos mais próximos da eficiência do que distantes, e as diferenças são pequenas, sendo difícil obter lucro através delas.
Foi essa estratégia que Luíz Barsi, Warren Buffett e alguns outros botaram em prática ao longo da vida: encontraram na ineficiência do mercado ativos subvalorizados, compraram e ganharam muito dinheiro quando o preço deles foi em direção ao valor justo.
E é exatamente isso o que o Golden State Warriors de Stephen Curry fez! Encontrou uma ineficiência no mercado basquete e se tornou um dos times mais vitoriosos da história recente da NBA.
Curry, o brinquedinho assassino
Saindo das salas de aula da Universidade de Chicago, nos anos 60, e indo para as quadras de basquete da Califórnia, nos anos 2000, chegamos ao foco da nossa história.
Em 2010, a franquia do Golden State Warriors (GSW), um time de basquete da NBA, passava por dificuldades. Até que um grupo de executivos como experiência limitada, liderados por um investidor do Vale do Silício, resolveu comprar a franquia e tentar consertá-la levantando uma única questão: “o que aconteceria se você construísse um time de basquete, ignorando todas as ortodoxias sobre como montar um time de basquete?” Pela franquia, os investidores pagaram a bagatela de US$ 450 milhões.
Para você ter ideia de como as coisas mudaram por lá, em 2010, ano da compra, o GSW não ganhava um título da NBA desde 1975. Desde que assumiu o comando da equipe, a nova gestão colocou uma ênfase em números. Basicamente, todas as decisões eram tomadas através de números, por mais estúpidas que pudessem parecer.
Logo no começo, a nova abordagem rendeu vários insights, mas um deles em especial mudou a forma como o jogo é jogado: os arremessos de 3 pontos.
Caso você não tenha muita familiaridade com esse esporte, existe uma linha em formato de semicírculo a uns 7 metros na cesta. Arremessos com sucesso atrás dessa linha valem 3 pontos. Arremessos com sucesso entre essa linha e a cesta valem 2 pontos.
O que a nova gestão havia descoberto é que arremessar um pouquinho a frente da linha ou um pouquinho atrás da linha não mudava muito a probabilidade de acertar o arremesso, mas, por outro lado, a pontuação em caso de sucesso crescia em 50%, passando de 2 para 3 pontos.
Na matemática básica isso é a chamada esperança matemática.
O cálculo que eles fizeram é que, se em regiões próximas à linha de 3 pontos, um jogador teria cerca de, digamos, 33% de chances de acertar a cesta, não importando se ele estava um pouquinho à frente ou um pouquinho atrás da linha de 3 pontos. Então a cada arremesso tentado de 2 pontos ele teria uma pontuação média de 0,66 pontos, mas a cada arremesso tentado de 3 pontos ele teria uma pontuação média de 0,99 pontos.
Para ser mais preciso, só seria uma decisão eficiente tentar um arremesso de dois pontos em vez do arremesso de 3 pontos se ele tivesse 1,5 vezes mais probabilidade em acertá-lo.
Mas será que fazia sentido chegar a conclusões tão óbvias em um esporte que era praticado há mais de um século? Como ninguém pensou nisso antes?
Para responder a essa pergunta, precisamos entender a evolução da cesta de 3 pontos no basquete.
A regra dos 3 pontos foi adicionada na NBA apenas em 1979. Naquele ano, os jogadores não faziam ideia de como se adaptar à nova regra. A prova disso é que naquela temporada, apenas 3% dos arremessos foram de 3 pontos.
Nas três décadas seguintes esse número aumentou, até estagnar nos 22%. Para o mercado, representado pelos jogadores de basquete, esse número foi tomado como ótimo ou eficiente. Mas as coisas estavam prestes a mudar.
Com os números em mãos, a nova gestão do GSW partiu para o recrutamento de novos atletas. Naquele momento, o que eles mais queriam era encontrar jogadores com eficiência de 43% nos arremessos de 3 pontos. Em outras palavras, jogadores que possuíam 43% de chances de acertar um arremesso de 3 pontos, ou seja, uma pontuação média de 1,29 pontos a cada tentativa.
Só que eles nem precisaram ir muito longe. O ditado de que santo de casa não faz milagre, definitivamente não se aplicava ao Stephen Curry. Recrutado pelos Warriors em 2009, Curry não era nem de longe o protótipo de um All-Star da NBA. Mesmo depois de duas temporadas, as coisas andavam meio incertas pra ele lá na Califórnia.
Mas ainda assim, quando a nova gestão definiu a estratégia de explorar a ineficiência da linha de 3 pontos, eles tiveram a certeza de que Stephen Curry deveria ser a peça central do projeto.
Não poderiam estar mais corretos! Desde Nicolau Copérnico, não se via uma descoberta tão brilhante. Só que dessa vez o sistema solar tinha o formato de uma quadra de basquete e a estrela central era um armador de Ohio, com seus 1,88 metros de altura.
E esse foi só o começo!
Em seguida, trocaram o até então principal jogador do time, Monta Ellis. Naquele momento a torcida não entendeu o que estava acontecendo e na semana seguinte à troca, vaiaram um dos donos e investidores da equipe. O próximo passo da gestão do GSW foi construir uma equipe em torno de Curry. Foi assim que chegaram em Klay Thompson, outro excelente arremessador de 3 pontos.
Depois disso, quando o time estava recrutando e contratando jogadores, a estratégia mudou e passaram a se perguntar: “Quem pode jogar com Steph e Klay?” Seguindo a nova estratégia chegaram jogadores como Andrew Bogut, Draymond Green, Andre Iguodala e Shaun Livingston.
O plano estava quase no fim, faltava só uma coisinha: um treinador que acreditasse no poder dos arremessos de 3 pontos.
Foi assim que trocaram o técnico Mark Jackson por Steve Kerr. Com o novo comandante, as tentativas de arremesso de 3 pontos dobraram, chegando a quase 45%. Lembra que, até então, a média do campeonato era de que apenas 22% dos arremessos eram de 3 pontos.
Pronto, agora era só deixar a “matemágica” agir.
A combinação de frequência e eficiência nos arremessos de 3 pontos teve um efeito enorme nos oponentes. Já na temporada de 2014/2015, Curry estabeleceu o recorde de arremessos de 3 pontos e o Warriors levou seu primeiro título da NBA em 40 anos.
A partir daí, com a fórmula vencedora em mãos, a ideia passou a ser potencializá-la
Stephen Curry recebeu sinal verde para fazer arremessos de 3 pontos, independente das circunstâncias ou do lugar da quadra. Não importava se o arremesso era 1 centímetro atrás da linha de 3 pontos ou do último lance de escadas da arquibancada. Matematicamente, a eficiência de Curry era tão alta que fazia sentido deixá-lo arremessar.
O fim dessa história eu acho que você já conhece. Desde o início da estratégia, o GSW já foi campeão da NBA 4 vezes. Curry possui uma eficiência de 42,7% em arremessos de 3 pontos e é, de longe, o jogador com o maior número de acertos em cestas de 3 pontos da história.
Mas afinal, a forma como se jogava basquete era realmente ineficiente?
Desde a temporada do primeiro título do GSW, as tentativas de cestas de 3 pontos passaram de 21,5 cestas por jogo, em 2014/2015, para 34,2 cestas por jogo na temporada mais recente, 2022/2023.
A verdade é que os Warriors transformaram a linha de 3 pontos em um limite no tempo. Antes de Curry e companhia, o basquete era jogado entre a linha de 3 pontos e a cesta. Agora, cada vez mais ele é jogado atrás da linha de 3 pontos.