Como não escrevi ontem, resolvi falar de dois assuntos hoje. Fica o registro de gratidão ao Matheus por ter cumprido a tarefa com louvor — fez tão bem que virou candidato a assumir como titular.
Comecemos com um argumento de autoridade. Charlie Munger pede passagem:
“Eu acho que passei 95% do tempo da minha fase adulta entendendo o poder dos incentivos e, ainda assim, eu sempre subestimei esse poder.”
Não é uma exclusividade de Munger. Ele está em boa companhia. No livro do Mankiw, que é uma espécie de Bíblia da Introdução à Economia (em vários sentidos), há logo no primeiro capítulo: as pessoas obedecem a incentivos. Até mesmo uma definição de capitalismo conta, entre os seus pilares, como um sistema que obedece às sinalizações do sistema de preços — se o preço sobe, os produtores estão incentivados a produzir mais, e os consumidores, a consumir menos; há uma sinalização na outra direção quando os preços caem.
Dan Ariely é outro que trata do assunto. Costuma dizer: exponha uma pessoa ao conflito de interesse e, cedo ou tarde, ela vai cair.
Não à toa, eu mesmo insisto tanto na importância de cuidarmos melhor dos conflitos de interesse na indústria financeira — o investidor paga muito caro por isso e, muitas vezes, nem percebe, porque as taxas e os rebates acontecem de forma sub-reptícia. Dois exemplos rápidos: uma corretora zera taxa de corretagem e cobra 5% na alavancagem para o trader; outra faz o mesmo na sua política de tarifação para investimentos no exterior e cobra um spread monumental na taxa de câmbio.
Quando trato desse assunto, não há nada pessoal contra os gerentes de bancos ou os agentes autônomos. Ao contrário, gosto da maior parte deles. A questão é da natureza dos incentivos. Se todos nós, rigorosamente todos, sentássemos naquelas cadeiras, estaríamos diante do mesmo problema. O sistema é… fossa.
A ideia da importância dos incentivos chega aos formuladores de política econômica. E essa é a essência da primeira parte do Day One de hoje.
Em sua famosa “Greenspan’s confession”, o ex-presidente do banco central dos EUA reconheceu que deixou as taxas de juros baixas demais, por muito tempo. Além disso, acreditou que pessoas atuando em prol do autointeresse levariam ao bem-estar social (é um pouco do que a gente aprende na microeconomia clássica). As baixas taxas de juro e a regulamentação fraca do sistema financeiro levaram a bolhas de ativos.
Claro que havia elementos técnicos para justificar a postura de Greenspan quando ele esteve à frente do Fed — o apelido “maestro” inclusive não foi à toa. Mas há uma estrutura de incentivos no âmbito pessoal que joga a favor de uma postura frouxa dos bancos centrais e dos Tesouros nacionais.
Se você sobe a taxa de juro antes da hora e/ou muito intensamente, é provável, em especial diante de uma economia com crescimento apenas moderado (há forças seculares atuando em prol de um baixo ritmo de expansão, como sintetizado por Larry Summers quando ele resgata o termo “secular stagnation”), que você jogue a economia em recessão rapidamente. Fica muito clara e estabelecida uma relação de causa e efeito. Você subiu o juro e você causou a recessão.
Se você faz uma regulação muito rígida sobre o sistema financeiro, esse rapidamente se insurge contra você. De novo, temos um culpado claro.
Já se você evita um problema de curto prazo por meio de juros baixos e enorme liquidez global, impede uma recessão mais severa no curto prazo. Ao mesmo tempo, corre o risco de contribuir para desequilíbrios de longo prazo — mas aí você já não estará mais sentado na cadeira de banqueiro central. Provavelmente, assumiu o cargo de economista-chefe em algum grande banco de investimento, de conselheiro em várias empresas e gestoras, e vive de palestras de US$ 200 mil.
Quando vai se alimentando um problema de longo prazo, fica mais difícil estabelecer uma relação de causa e efeito. Até porque haverá uma confluência de diversos fatores até que uma nova crise estoure. Será difícil lembrar de algo que aconteceu anos antes e atribuir-lhe a responsabilidade.
Os riscos mais evidentes de uma política monetária e fiscal excessivamente frouxa são calote da dívida pública, aumento da inflação e bolha de ativos.
Como os países com maior esforço fiscal devem principalmente em moeda local, parece improvável a hipótese de default da dívida. Os governos dispõem da senhoriagem e, no limite, gozam da prerrogativa de emitir moeda para pagar dívida.
O segundo risco, portanto, é justamente a inflação — a perda do valor do dinheiro frente aos bens e serviços da economia. Note que isso já está acontecendo frente ao valor dos ativos financeiros. Tudo tem subido: bitcoin, prata, ouro, ações, crédito. Ao menos por enquanto, não há aumento de preços no mercado físico, muito provavelmente porque existem forças estruturais atuando na direção contrária, que são a tecnologia e a demografia, questões bastante deflacionárias. Em adição, existe circunstancialmente (embora seja também um ponto mais estrutural, ligado à tal estagnação secular) uma ociosidade brutal na economia. Sem nenhuma pressão do mercado de trabalho, fica difícil pensar num processo inflacionário intenso e sistemático. A inteligência artificial pode aprofundar essa dinâmica, tornando simplesmente sem função uma enorme massa de empregados.
O terceiro ponto se trata do mais preocupante: a possibilidade de bolha de ativos.
Quando Ben Bernanke foi perguntado a respeito do que ele faria diferente na crise de 2008 se pudesse voltar no tempo, ele respondeu dizendo que faria mais e mais rápido. Essa foi a lição transmitida: façam mais cortes de juro, mais impressão de moeda e mais rápido.
De fato, o esforço fiscal e monetário agora é maior e mais rápido, sem nenhum paralelo na história. A contrapartida disso é a possibilidade de os preços dos ativos subirem ainda mais, alimentados por muita liquidez, pela percepção de que não há alternativa além de comprar ativos de risco (TINA), pelo medo de ficar de fora (FOMO) e pelo efeito manada (veja o poder de influência de algumas pessoas nas redes sociais; mesmo sem ter equipes próprias de pesquisa de investimento, determinam, por vezes, o comportamento de centenas de milhares de pessoas).
Esses elementos podem fazer os preços irem além do que seria razoável, porque dificilmente alguém vai ter coragem de ficar shorteando para tentar arbitrar esse descolamento entre preço e valor diante de tanto fluxo comprador. Você pode acabar certo em teoria, lá no final; mas até aí já desmontou o short e perdeu dinheiro.
O ponto central aqui é que formadores de política econômica tem menor incentivo a cuidar de problemas de longo prazo. É muito mais confortável e reputacionalmente mais defensável endereçar as adversidades imediatas, atuais e circunstanciais. Até porque elas são legítimas também e muito mais tangíveis do que uma suposição e um risco para o futuro.
Se você senta na cadeira do Fed, é muito mais fácil estimular a economia agora e negligenciar, por exemplo, o déficit americano, cujo problema potencial será visto daqui a dez anos, com o risco de perda de referência do dólar como reserva de valor lá na frente ou com um eventual ressurgimento da inflação. Não estou dizendo que seja errada essa postura. É uma escolha, que possivelmente todos nós também faríamos.
Portanto, em termos pragmáticos, minha percepção é de que os mercados continuarão sendo guiados positivamente por mais e mais liquidez e pacotes fiscais pelos próximos meses. Ninguém vai tirar o pé do acelerador agora, uma vez que poderá fazê-lo quando a vacina já tiver chegado. Então, a economia tende a estar muito mais forte, os empregos voltando, a renda retomando. Com a maior saúde das economias, poderemos tirar os remédios e os esteroides.
Dito de outra forma, a preocupação de curto prazo sobre o que acontece com os mercados quando os estímulos forem retirados talvez não devesse ser tão intensa. Simplesmente porque os estímulos não serão retirados. Seguindo a cartilha de Bernanke, o risco é irmos longe demais, criando bolhas lá na frente — mas isso é assunto para “lá pra frente”. Uma ideia boa numa hora ruim é apenas uma ideia ruim.
Claro que há riscos de curto prazo — sempre há. O investidor deve pensar probabilisticamente, ponderando os vários cenários possíveis à frente.
Cito três. Os dois primeiros são um tanto óbvios: uma eventual segunda onda mais intensa do coronavírus e a flexibilização do teto de gastos no Brasil, ainda que venham acompanhadas de qualquer eufemismo do tipo “estamos mantendo o teto, apenas estendendo o orçamento de guerra para 2021” e/ou “o teto segue, só tiramos gastos sociais e investimentos da conta”.
O terceiro é mais capcioso e pouco debatido. A confirmação de uma vacina seria uma notícia espetacular, claro, em vários sentidos. Contudo, existe uma possibilidade de que ela gere uma grande migração de investimentos. Os ativos que vinham dando bastante certo desde março talvez possam ficar para trás em termos relativos. Uma coisa é um portfólio diante do “fique em casa”. Ele não necessariamente deve ser o mesmo para um processo de reabertura das economias. Se formos para uma abertura da economia com mais gastos fiscais, o mercado pode migrar de forma mais estrutural para o “reflation trade” (empresas ligadas a commodities, por exemplo) e para aquilo que ficou para trás no ano. Enquanto todo mundo estava comprado em e-commerce e tecnologia como portos seguros diante da pandemia, com a vacina, talvez migre-se para outras coisas, mais ligadas ao value investing clássico (aqui no sentido de Benjamin Graham, de descontos sobre os lucros e os ativos já existentes), como shoppings, consumo físico, empresas educacionais, varejo de moda. O risco fica ainda maior quando se considera a correlação positiva assumida entre o Nasdaq e o ouro nos últimos tempos. Ou seja, tudo poderia sofrer ao mesmo tempo.
Curiosamente, quem pode desligar a luz dos vencedores do ano é uma notícia muito boa. A chegada da vacina pode fazer tudo subir, claro. Mas uns subirão mais do que outros. A festa deve continuar, mas, quando amanhecer, é hora de ir dormir. Há lógica nesse caleidoscópio.
Agora o segundo tópico: ESG (ou ASG em português, questões de meio ambiente, sociais e de governança). Como os três leitores talvez saibam, eu estava devendo algo a respeito — na verdade, ainda estou. Palavras não pagam dívidas.
Demorei um pouco por duas razões. Primeiro, sempre é bom estudar antes de falar muita besteira. Precisei me aprofundar no tema, para evitar falar bobagem ou abordar de forma superficial. Depois, e mais importante, porque gostaria de trazer algo material sobre ESG.
Esse algo precisaria ser efetivo, no sentido de ter tangibilidade e real impacto na comunidade, e também se alinhar aos nossos princípios aqui na Empiricus . A verdade é que vejo muita hipocrisia sobre o tema. No final, são pessoas que não querem promover a causa, disseminá-la na sociedade. Ao contrário, querem se promover a partir da causa. Eu realmente não consigo ser assim. Assumi o compromisso de caminhar com o ESG aqui dentro, contanto que isso não ferisse os valores e propósito da Empiricus, e também as carteiras dos nossos assinantes — aqui, eles estão à frente de qualquer acrônimo da moda.
Para dar um exemplo: sou obcecado por igualdade de oportunidades, que, aliás, é um princípio liberal clássico. Porém, não me desperta a mesma empatia a igualdade de patrimônio ou de renda, que podem ferir a real meritocracia — outro valor caro para mim. Então, posso ser a favor de um imposto sobre herança, mas contra um imposto sobre patrimônio. De forma similar, se um homem e uma mulher com as mesmas competências chegarem para um processo seletivo na Empiricus e o homem se sair melhor a partir de critérios quantitativos e mensuráveis, ainda que haja na equipe menos mulheres do que homens, meu voto seria em favor do homem — obviamente, se a mulher se sair melhor, será o contrário. Essa é apenas a minha forma de enxergar as coisas. Nada contra quem pensa diferente.
Finalmente, acho que chegamos a um modelo bacana envolvendo ESG. Uma coisa com real impacto na sociedade, feita em prol da melhoria do meio ambiente e também de aspectos sociais, mas totalmente alinhado aos princípios da Empiricus e única — não há nada parecido com isso hoje no Brasil. Essa ideia só seria possível a partir da nossa parceria com a Vitreo. Por isso, devo agradecê-los antecipadamente.
Tenho provocado o Jojo e o Patrick no seguinte sentido: imagine se houvesse um FoF que investisse nos melhores fundos do Brasil — respeitando, sim, os critérios ESG, mas ao mesmo tempo com sólido histórico de performance. Isso já seria uma iniciativa interessante; inclusive já há algo assim na XP.
Contudo, há um passo além, inédito por essas bandas: a taxa cobrada pelo FoF seria parcial ou integralmente usada para comprar e neutralizar carbono. Então, teríamos um efeito social e ambiental, mais claro e direto ainda no caso ambiente, numa iniciativa jamais feita no Brasil dessa forma.
O carbono pode ser a commodity do futuro — e logo pode entrar também na onda de valorização ainda mais forte quando for percebido como uma alternativa ao dinheiro ( “cash is trash”).
Veja que interessante: neutralizar mil toneladas de emissão de carbono custa US$ 15 mil por ano. Só para se ter uma ideia, a B3 emite e neutraliza três mil toneladas. Se o fundo cobrar, apenas como exemplo, 0,75% de taxa de administração e usar metade disso para comprar e neutralizar carbono, já descontados os custos com o administrador, a cada R$ 20 milhões de PL, já poderia neutralizar quase mil toneladas de CO2.
Isso é mais do que toda a Empiricus emite. Arrisco dizer que é mais do que a Vitreo e a Empiricus emitem juntas. Falaríamos, assim, de não apenas neutralizar carbono, mas de carbono negativo.
Seria uma forma de agradar investidores e florestas ao mesmo tempo. Assim como deve ser.