Em 30 de março de 1964, João Goulart compareceu a uma reunião de sargentos no Automóvel Clube para famoso discurso em prol de reformas pretendidas pelo governo e para convocar o apoio das Forças Armadas. Encerrou assim:
“Esse é o dinheiro graúdo. Se os sargentos me perguntarem sobre o dinheiro mais miúdo, mas também muito poderoso, eu diria que é o dinheiro dos proprietários profissionais de apartamentos em todo o Brasil, de apartamentos que estavam sendo negados aos brasileiros, de apartamentos que não se alugavam mais em cruzeiros, de apartamentos cujo aluguel já se exigia pagamento em dólar, como se Copacabana fosse um país estrangeiro, como se os brasileiros vivessem subordinados a outros interesses. É o dinheiro, por outro lado, senhores sargentos, de comerciantes desonestos que estavam explorando e roubando o povo brasileiro e que o governo, no direito legítimo que lhe confere a lei, defendeu e deu ordem ao Ministro Jurema para que não mais permitisse a exploração e que defendesse o povo em toda a sua integridade. Enfim, trabalhadores, enfim, militares, enfim, brasileiros, é o dinheiro dos grandes laboratórios estrangeiros de medicamentos. De laboratórios que terão que cumprir a lei ou terão que ser subordinados à lei porque o Presidente da República não vacilará um instante sequer na execução de todas as leis e de todos os decretos.”
O então presidente da República não conseguiu cumprir sua promessa de não vacilar na execução de todas as leis e de todos os decretos. No dia seguinte, ocorreria o golpe (para alguns historiadores, civil-militar) que culminaria no regime militar brasileiro, prevalecente até 1985.
A troca de ministros ocorrida, em sua magnitude e extensão, de maneira súbita ontem encontrou na imprensa e até mesmo em experientes analistas de mercado paralelos com aquele março de 1964. Seja pela proximidade no calendário ou pelo nível de surpresa e agitação, que trouxe variadas especulações, incluindo o risco de ruptura institucional. Ricardo Kotscho, colunista do UOL, por exemplo, escreveu que a falta de apoio das Forças Armadas na sua tentativa de decretar Estado de Sítio foi a principal razão para Bolsonaro demitir sumariamente o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva.
Talvez haja mesmo algum esgarçamento na relação entre o Exército e o presidente da República, com, de fato, certo desgaste institucional. Ao mesmo tempo, precisamos ver a coisa com o devido afastamento. Uma das maiores habilidades de um grande investidor está em separar o que é ruído (mera perturbação aleatória) do que realmente é sinal (uma efetiva mudança de fundamentos). No momento em que o investidor deixa suas decisões serem contaminadas pela emoção, pela ideologia e pelas preferências individuais, sobrepujando a racionalidade, ele está morto.
Ontem, certamente tivemos muito barulho. Ruídos por todo lado. Tanta coisa e mudanças acontecendo ao mesmo tempo. Difícil até saber quem é quem.
Tornando curta uma longa história e focando naquilo que nos interessa como analistas de investimentos, cujos comentários políticos (após conversar e ler analistas políticos competentes) circunscrevem-se apenas ao escopo ligado às suas consequências para o mercado de capitais (por favor, entenda isso! Ninguém aqui tem político de estimação; tratamos do tema apenas por dever de ofício, porque isso impacta os investimentos), resumo a coisa da seguinte forma:
1 — A movimentação da véspera é, sim, uma vitória do Centrão. Mas há de se observar isso com cautela. O Centrão é, por definição, superlativo. Ele é grande demais. Há vários centrões dentro do Centrão. Aquele que sai vitorioso, sobretudo com a nomeação da deputada Flávia Arruda (PL-DF) para a Secretaria de Governo da Presidência da República, é aquele de Arthur Lira, que, por sua vez, tem lutado batalhas ao lado do ministro Paulo Guedes em prol das reformas e de uma postura mais fiscalista. A própria deputada Flávia Arruda também adotou postura semelhante nos últimos dois anos. A nomeação é um aceno ao Congresso, num momento em que precisamos superar aquele fatídico Orçamento inexequível, é uma vitória também do Ministério da Economia. Depois de um cartão amarelo, opta-se por uma postura menos agressiva e combativa.
2 — A troca de Ernesto Araújo por Carlos Alberto França vai no mesmo sentido. Alivia as tensões com o Senado depois do recrudescimento das relações, sobretudo no final de semana, traz um perfil menos beligerante e estridente às Relações Exteriores, facilitando inclusive a relação com outros ministérios, e permitindo uma diplomacia, ao menos na margem, menos ideológica e mais pragmática. Melhora a ambiência com a embaixada da China, que é um dos principais exportadores de imunizantes contra o coronavírus.
3 — Desavenças, algumas até importantes, e resistências dentro da ala militar, até mesmo algum esgarçamento na relação, não significa ruptura. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Não há porque pular apressadamente para conclusões. Os militares têm a devida compreensão de seu papel institucional.
Ninguém espera águas calmas e cristalinas no Brasil. Ao mesmo tempo, como Nietzsche tenta ensinar a Breuer no livro de Irvin Yalom, tememos muito as análises rasas. Elas preocupam mais do que a volatilidade.
A exemplo do personagem do livro ou da dor nas costas de George Soros, representação material da intuição capaz de identificar um desajuste em seu portfólio, também sinto dor física com certas percepções sobre ativos em Bolsa.
Como Bertha Pappenheim, permito-me aqui o método de “limpeza de chaminé”, como se pudesse espiar o próprio desespero a partir da escrita:
— Atenção especial para o IPO da Raízen e o que isso pode representar para Cosan (SA:CSAN3). Segundo a imprensa, bancos já estariam contratados para a operação. Nenhuma surpresa, claro, é a turma de sempre — aliás, uma elucubração aqui: por que o BTG (SA:BPAC11) não troca a BW pelo Rubens na Eneva? Seria uma boa, hein? Bom, voltando do devaneio… nem vamos supor que Raízen saia aos 15 vezes Ebitda de Neste, a referência europeia de renováveis, ou algo como R$ 100 bilhões. Vamos tentar algo como 10 vezes Ebitda, que já seria formidável. O Grupo todo poderia negociar a 10 vezes. Temos algo como R$ 10 bilhões de Ebitda. Ou seja, EV de R$ 100 bilhões. Para a dívida de R$ 26 bilhões, valor justo do equity de R$ 74 bilhões, upside de 75%.
— Lojas Americanas (SA:LAME4) é a ação mais mal-apreçada aos níveis atuais. Ignora por completo o deal que vem pela frente, sendo que não demora muito para sabermos a relação de troca com B2W (SA:BTOW3). Seja qual for, a operação traz muita sinergia, mais liquidez, simplificação da estrutura societária, melhora de governança. Tese secular de e-commerce e pega abertura na veia com o varejo físico também. Combinação muito boa para transitar num mundo que cada vez mais vai cobrar o omnichannel. Outro devaneio: e se LAME fizesse um tender offer de Pão de Açúcar? Toma isso a cerca de 30-40% pra cima, limpa o francês, que todo mundo sabe que é um controlador complicado, faz um deal accretive e já posiciona a empresa em outro patamar no ramo de alimentos.
— Poucas vezes vi incorporadoras em situação tão boa e tão baratas. Acho que nunca vi para falar a verdade, porque esse nível de controle de orçamento e dos parceiros de obra não existia no último ciclo. Era um risco enorme de execução que diminuiu muito com a tecnologia. Hoje, você monitora todo o avanço de obra e o custo num app (ao menos, quem faz direito, claro). É muito mais difícil ter grande estouro de orçamento agora, é tudo SAP monitorado num dashboard do Tableau. Então, você tem home builders com caixa e pouco estoque negociando abaixo do valor do ativo líquido e do valor de liquidação, com muito menos risco de execução. Quando a curva de juro se acalmar minimamente, e ela precisa se acalmar, porque do contrário o Brasil quebra, o setor vai andar 30-40% em um mês. Minhas preferidas são Mitre (SA:MTRE3) e Direcional (SA:DIRR3), mas a verdade é que poderíamos raspar um basket aqui.