Em um cenário de constante evolução e mudanças no mercado de capitais, o governo frequentemente promulga normas que, embora bem-intencionadas, podem ter efeitos colaterais indesejados. A recente MP 1.184/2023 é um desses exemplos. Essa medida, ao introduzir o método de tributação "come-cotas" aos FIDCs, pode impactar negativamente a indústria de crédito. Mas por que isso acontece? Vamos entender melhor essa questão.
No nosso último artigo, falamos sobre a nova regra trazida pela MP 1.184 e seu impacto negativo na indústria de crédito. Para quem não está familiarizado, o termo 'come-cotas' refere-se a uma forma de tributação sobre os fundos de investimento em que o imposto de renda (IR) é recolhido semestralmente, ao invés de apenas no momento do resgate.
Esse método, embora comum em alguns fundos, apresenta peculiaridades quando aplicado aos FIDCs, e é justamente sobre essas especificidades que queremos nos aprofundar. Em suma, pontuamos que existem dois motivos principais pelos quais a nova regra proposta deve ser reavaliada. Hoje, faremos uma análise mais detalhada e didática sobre o tema.
O primeiro motivo: liquidez dos direitos creditórios
O primeiro motivo é evidente: os títulos são ilíquidos, ou seja, não são facilmente vendidos no mercado secundário. Vamos explicar melhor.
Imagine que você tem uma sacola cheia de laranjas que comprou esperando vender por um preço mais alto no futuro. Em um mercado ideal, sempre que você decide vender suas laranjas, há alguém disposto a comprá-las imediatamente pelo preço de mercado. No entanto, no mundo real, nem sempre é assim. Quando falamos sobre FIDCs, muitos títulos são como essas laranjas que não encontram compradores imediatos. São considerados "ilíquidos", o que significa que não podem ser facilmente vendidos ou convertidos em dinheiro.
E aqui está o problema: mesmo que, no papel, suas laranjas tenham valorizado, se você não consegue vendê-las, o lucro é apenas teórico. No mundo dos FIDCs, esse problema é ampliado. De acordo com a MP 1.184, o imposto seria cobrado em cima do lucro teórico (valorização das laranjas) e não sobre o lucro realmente realizado quando da venda das laranjas. Isso é como ser tributado por ter uma sacola cheia de laranjas valorizadas, mesmo que você não tenha encontrado um comprador para elas.
O segundo motivo: precificação dos direitos creditórios
Agora, relacionando com nossa analogia, imagine que precatórios (uma espécie de direito creditório) são como laranjas especiais, que têm seu valor, mas é muito difícil determinar exatamente quanto valem, principalmente se não há um mercado ativo para elas. É por isso que a regra trouxe uma preocupação considerável aos participantes do mercado de capitais que fazem parte da indústria de crédito. Os "FIDCs NPLs" (FIDCs "Non Performing Loan" - créditos inadimplentes) são um ótimo exemplo, notadamente pela dificuldade de contabilizar os ativos de forma correta, visto que os direitos creditórios não possuem prazo definido de vencimento.
Os "FIDCs NPLs" são fundos "Não Padronizados" (NPs) que compram direitos creditórios inadimplentes, abrangendo quaisquer créditos com expectativa de recuperação. Os precatórios são bons exemplos, já que a aquisição ocorre com fundamento em uma expectativa de ganhos futuros quando do encerramento do trâmite judicial e pagamento.
Como esses ativos são contabilizados no fundo? O mais fácil a se fazer é registrar os ativos pelo valor pago na aquisição, ou seja, pelo preço do custo. Mas não é tão simples assim. Em 2013, a CVM publicou um Ofício Circular (01/2013 sobre a ICVM 489) determinando que todos os ativos enquadrados como "sem data de vencimento" ou "créditos inadimplidos", deveriam ser classificados como “Ativos Financeiros ao Valor Justo por Meio do Resultado”, em conformidade com a definição de valor justo estabelecida pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) no seu Pronunciamento Técnico 46. Assim, o valor justo é "o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração.".
O CPC 46 estabelece uma "hierarquia de valor justo" para avaliar ativos e passivos. Em resumo e numa linguagem simples, essa hierarquia define a maneira como os valores são determinados, dividindo-os em três níveis:
Nível 1: Preços diretos do mercado
São preços que podemos ver claramente em mercados ativos para ativos/passivos idênticos.
Nível 2: Preços indiretos do mercado
Mesmo que não tenhamos uma cotação direta, usamos informações observáveis para ativos/passivos, seja de forma direta (como um preço) ou indireta (como uma cotação para um ativo similar).
Nível 3: Estimativas e modelos
Quando não há dados claros de mercado, seja direta ou indiretamente, os valores são determinados por meio de técnicas e modelos de avaliação, muitas vezes utilizando informações que não são diretamente observáveis no mercado.
Vamos traduzir. Isso significa que, assim como a sua sacola de laranjas especiais, todos os direitos creditórios da indústria de FIDCs que estejam em um contexto de ausência de negociação de mercado na data de mensuração estarão no último nível de hierarquia, ou seja, será necessário trabalhar com dados não observáveis utilizando dados observáveis. Além dessa tarefa difícil e constante por parte dos integrantes de mercado, cabe ao Administrador analisar a probabilidade de recuperação e formar uma provisão de perda com base em eventuais compradores, circunstâncias das garantias e as peculiaridades do ativo no curso do tempo.
Resumindo, a questão central é que a tributação baseada em lucros não realizados em FIDCs é problemática, pois a própria precificação dos ativos é uma tarefa contábil delicada. Assim como você não gostaria de pagar impostos sobre laranjas que não conseguiu vender, investidores podem acabar pagando impostos sobre lucros que, na realidade, não existem. Esse tipo de tributação não apenas penaliza a indústria, mas também pode levar a situações em que investidores têm que desembolsar dinheiro para cobrir impostos de lucros teóricos. É um cenário que não beneficia ninguém e merece atenção e discussão adequadas.
Coerência legislativa
A tributação pelo método "come-cotas" não se alinha às características dos FIDCs fechados. Estes fundos frequentemente investem em ativos de liquidez limitada ou com alto risco, tendo ainda uma precificação complexa. Importante ressaltar que a valorização desses direitos creditórios é incerta e só ocorre efetivamente em situações de liquidez, como amortização, resgate ou negociação de cotas.
Assim, qualquer tentativa de antecipar o pagamento de tributos pelo método "come-cotas" poderá resultar em tributação sobre lucros apenas teóricos, não realizados. Vale destacar que a MP 1.184, em seu artigo 23, inciso V, já exclui os fundos de investimento referenciados na Lei no 12.431/2011 (fundos de investimento em direitos creditórios no setor de infraestrutura - FIDC-IE). Portanto, para manter a coerência legislativa, essa exceção deveria ser estendida a todas as modalidades de FIDCs.
Concluindo, dada a importância do tema e suas implicações, é imperativo que a redação atual da MP 1.184 seja revisada. O objetivo é excluir a aplicação do "come-cotas" para os FIDCs fechados, fazendo com que o IR seja aplicado somente na data de distribuição de rendimentos, amortização, resgate ou alienação de cotas.