A digitalização da economia tem transformado de forma acelerada os sistemas monetários e financeiros globais, trazendo várias incógnitas a serem identificadas. Nesse cenário, as Moedas Digitais de Bancos Centrais (CBDCs) emergem como uma das inovações mais relevantes, com potencial para reformular a fundamentação monetária das economias globais e, assim, a forma como os governos atuam na sua elaboração de políticas fiscais e monetárias.
Diferentemente de ativos como as criptomoedas descentralizadas, as CBDCs são emitidas e controladas por bancos centrais. Não confundir com stablecoins (e.g. USDT) que são emitidos por entidades privadas e podem ser pareadas ou não em alguma moeda fiduciária (também há stablecoins de commodities), como o dólar americano, e são lastreadas em vários ativos para fundamentar o seu valor.
Dito isso, a relevância das CBDCs é evidenciada pelo crescente interesse de bancos centrais ao redor do mundo. Dados recentes mostram que cerca de 85% das autoridades monetárias globais estão conduzindo estudos ou implementando projetos-piloto relacionados a esse instrumento.
Países como China e Brasil já avançaram significativamente na implementação de seus próprios modelos. No caso brasileiro, há o início de implementação do Drex, o real digital.
Este artigo busca contextualizar o debate sobre as CBDCs, analisando suas fundamentações, implicações econômicas e políticas, aplicabilidades e desafios associados.
Definição de CBDC
As Moedas Digitais de Bancos Centrais (CBDCs) representam uma aplicabilidade digital mais direta de moeda fiduciária, ao ser, de forma oficial e centralizada, emitidas e controladas por bancos centrais.
Diferentemente de criptomoedas como o Bitcoin, que operam em redes descentralizadas e são caracterizadas pela ausência de intermediários, as CBDCs mantêm um controle centralizado, permitindo que as autoridades monetárias regulem diretamente sua emissão e circulação (e até como pode ser utilizado – considerando um governo autoritário ou totalitário).
Além disso, as CBDCs também se distinguem das stablecoins, que, embora frequentemente atreladas a moedas fiduciárias para garantir estabilidade, são emitidas por entidades privadas e não possuem a fundamentação estatal.
Os bancos centrais têm buscado as CBDCs por diversos motivos.
Um dos principais é a modernização dos sistemas de pagamento, reduzindo custos de transação e aumentando a eficiência, tanto em pagamentos domésticos quanto transfronteiriços.
Além disso, em economias emergentes, onde muitas pessoas ainda não possuem acesso a serviços bancários, as CBDCs oferecem uma oportunidade de inclusão financeira, criando meios de pagamento acessíveis.
O Drex no Brasil, por exemplo, foi projetado para otimizar transações financeiras entre instituições e abrir caminhos para maior integração financeira em regiões historicamente desassistidas.
Por fim, as CBDCs são resposta dos governos e bancos centrais à crescente popularidade de criptomoedas e stablecoins, o que, como será tratado mais adiante, mina o poder de políticas governamentais, principalmente políticas monetárias. Elas permitem que os bancos centrais preservem o controle sobre a política monetária e suas moedas fiduciárias.
Aspectos Operacionais das CBDCs
A implementação de CBDCs envolve decisões cruciais relacionadas à sua arquitetura operacional, tecnologia subjacente e os impactos nas dinâmicas de privacidade e segurança.
Essas questões microeconômicas definem não apenas a viabilidade técnica das CBDCs, mas também sua aplicabilidade e impacto no sistema financeiro nacional e/ou transnacional.
A arquitetura operacional é um dos aspectos centrais no design das CBDCs. Bancos centrais têm explorado modelos híbridos ou intermediados, nos quais o setor privado (e.g. bancos comerciais) desempenha parte do papel na interação com os usuários finais.
Este modelo permite aos bancos centrais manter um foco regulatório e operacional enquanto aproveitam a infraestrutura e expertise do setor privado.
No Brasil, o Drex exemplifica essa abordagem ao ser projetado como uma stablecoin de atacado. Diferentemente de uma CBDC de varejo, que permite que indivíduos mantenham contas diretamente com o banco central, o Drex está voltado exclusivamente para transações entre instituições financeiras, visando maior eficiência no sistema de liquidação interbancária.
A distinção entre stablecoins de atacado e varejo também destaca os objetivos variados das CBDCs. Stablecoins de varejo são desenvolvidas para atender diretamente a consumidores e empresas, oferecendo uma moeda digital que é provida e gerenciada diretamente pelos bancos centrais.
Por outro lado, stablecoins de atacado, como o Drex, são projetadas para otimizar transações institucionais, como a liquidação de títulos públicos, reduzindo custos e riscos de atraso nas transações.
Essa diferenciação permite que os bancos centrais direcionem suas estratégias para áreas específicas do sistema financeiro.
Em relação à tecnologia, embora o uso de registros distribuídos (Distributed Ledger Technology - DLTs) seja frequentemente debatido como uma opção para as CBDCs, sua implementação prática enfrenta entraves.
Contextualizando, um exemplo muito conhecido de DLT é a blockchain do Bitcoin, onde há registro das transações de forma descentralizada entre vários nós da rede, que verificam e validam os dados relativos.
Dito isso, muitos bancos centrais têm optado por sistemas centralizados tradicionais. No caso do Drex, foi adotada uma blockchain privada como base tecnológica, o que permite rastrear e assegurar as transações sem comprometer a agilidade do sistema.
A privacidade e a segurança de dados também são questões centrais no design das CBDCs. Um dos principais dilemas envolve equilibrar o anonimato das transações e a necessidade de conformidade regulatória.
A implementação de CBDCs totalmente anônimas enfrenta desafios significativos em termos de controle do banco central, tornando-as impraticáveis na maioria dos casos. Uma moeda digital completamente anônima poderia dificultar o cumprimento de regulamentações financeiras e comprometer a supervisão macroeconômica.
Por outro lado, CBDCs com alta rastreabilidade levantam preocupações quanto à privacidade dos usuários, especialmente se houver o risco de uso indevido dos dados coletados, o que pode vir a ser um instrumento de controle político e econômico muito forte em um governo autoritário ou totalitário.
Para equilibrar privacidade e conformidade regulatória, tecnologias como as provas de conhecimento zero (zero-knowledge proofs) têm sido exploradas. Essas provas permitem que uma parte prove que possui determinada informação (como a validade de uma transação) sem revelar os detalhes subjacentes dessa informação.
No contexto de uma CBDC, isso poderia garantir que uma transação seja legítima sem expor dados sensíveis, como a identidade do remetente ou do destinatário. Essa abordagem fornece um nível significativo de confidencialidade enquanto mantém a capacidade de auditoria e conformidade regulatória, mitigando os riscos associados a uma rastreabilidade excessiva ou à completa falta dela.
Portanto, as decisões sobre arquitetura, tecnologia e privacidade são centrais para as CBDCs e seus corolários. Projetos como o Drex demonstram que o uso de stablecoins de atacado pode trazer melhorias para o sistema financeiro sem afetar diretamente o consumidor varejo.
Impactos Macroeconômicos
A introdução de CBDCs pode gerar transformações significativas na dinâmica macroeconômica, especialmente no que diz respeito ao papel dos bancos, à estabilidade financeira e à condução da política monetária.
Uma das principais preocupações é a possível desintermediação bancária. Ao oferecer aos indivíduos uma alternativa direta para armazenar moeda, as CBDCs poderiam reduzir
os depósitos bancários, tradicionalmente utilizados como uma das principais fontes de financiamento dos bancos comerciais.
Essa redução no volume de depósitos pode levar a custos mais altos de captação, restringir o crédito e impactar no investimento econômico.
A extensão desse efeito dependerá do grau de substitutibilidade entre depósitos bancários e CBDCs, bem como das ferramentas que os bancos comerciais terão para ajustar suas operações.
Além disso, as CBDCs podem influenciar a estabilidade financeira em cenários de crise. Um exemplo é o aumento do risco de corridas bancárias.
Durante períodos de instabilidade, os indivíduos podem transferir rapidamente seus depósitos para CBDCs, consideradas mais seguras por serem emitidas pelo banco central. Essa migração acelerada pode exacerbar crises de liquidez e comprometer a solvência de bancos comerciais.
No campo da política monetária, as CBDCs oferecem um potencial considerável para ampliar o alcance das ações dos bancos centrais. Uma das aplicações mais discutidas é o uso de taxas de juros negativas, algo não muito efetivo no sistema financeiro atual devido à existência do dinheiro físico, que tem taxa zero de remuneração.
Com a digitalização total da moeda, seria possível implementar políticas que incentivem o gasto e o investimento em momentos de recessão, sem o obstáculo do limite inferior de zero.
Ainda, as CBDCs podem viabilizar transferências específicas, permitindo aos bancos centrais direcionar estímulos de maneira mais precisa. Em vez de utilizar instrumentos amplos, como a redução da taxa de juros ou programas de compras de ativos, seria possível realizar transferências diretas a determinados grupos, como famílias de baixa renda ou setores econômicos específicos, aumentando o poder governamental.
Pagamentos Transfronteiriços
As CBDCs têm o potencial de melhorar significativamente os pagamentos transfronteiriços, em questões relacionadas a custos elevados, lentidão de processamento e acessibilidade limitada.
Os pagamentos transfronteiriços, no sistema atual, dependem amplamente de uma complexa rede de bancos correspondentes, que atuam como intermediários para facilitar a liquidação de transações entre diferentes jurisdições. Essa estrutura, embora funcional, apresenta diversas ineficiências. O processo geralmente envolve múltiplas etapas, taxas significativas, e pode levar dias para ser concluído, especialmente em transações de menor escala.
Ao eliminar intermediários tradicionais, como bancos correspondentes, as CBDCs podem reduzir significativamente os custos associados às transferências internacionais.
Essas reduções são particularmente importantes para pequenos negócios e trabalhadores migrantes que dependem de remessas.
A implementação de padrões tecnológicos globais pode ainda ampliar a acessibilidade, permitindo que agentes econômicos de diferentes tamanhos e regiões participem de forma mais equitativa no comércio internacional.
Os modelos operacionais para pagamentos transfronteiriços com CBDCs variam em complexidade e nível de integração, com três abordagens principais sendo consideradas:
1. Sistemas Compatíveis: Nesse modelo, cada país desenvolve sua própria CBDC com padrões tecnológicos e regulatórios que garantam a compatibilidade básica para liquidações internacionais. Embora seja o modelo menos integrado, ele permite que cada jurisdição mantenha sua autonomia regulatória. Essa abordagem é adequada para cenários onde a coordenação global é limitada, mas oferece menos eficiência em termos de custos e rapidez.
2. Sistemas Interligados: Essa configuração conecta diretamente os sistemas de CBDCs de diferentes países por meio de interfaces técnicas ou redes compartilhadas. As transações são liquidadas por meio de mecanismos de pagamento-versus-pagamento (PvP), reduzindo o risco de liquidação associado à troca de moedas. Esse modelo exige maior cooperação entre os bancos centrais, mas proporciona eficiência considerável.
3. Sistemas Integrados ou Multi-CBDC: Nesse modelo, vários bancos centrais colaboram para criar uma infraestrutura compartilhada de pagamentos, com um sistema único que facilita a emissão e o uso de CBDCs em transações
transfronteiriças. Esse é o modelo mais ambicioso, oferecendo altos níveis de eficiência e segurança, mas também requerendo um nível significativo de coordenação regulatória, técnica e política. Exemplos como o Project Dunbar, liderado pelo BIS e bancos centrais parceiros, ilustram o potencial dessa abordagem.
Independentemente do modelo adotado, o sucesso das CBDCs em pagamentos transfronteiriços dependerá de uma forte coordenação global, que alinhe padrões tecnológicos, requisitos regulatórios e práticas de governança.
Dito isso, stablecoins e criptomoedas agem, pelo menos atualmente, de forma mais direta e efetiva para uma parte significativa dos agentes econômicos que operam no comércio global.
Considerações Finais
As CBDCs representam um marco para os sistemas financeiros, mas também traz à tona desafios substanciais que precisam ser cuidadosamente enfrentados.
Entre as questões mais complexas estão os aspectos regulatórios e a interoperabilidade entre jurisdições, especialmente em um ambiente globalizado onde a harmonização de normas é crucial para garantir que as CBDCs funcionem de forma integrada e eficiente. A ausência de padrões globais bem definidos pode gerar fragmentação, limitando a aplicabilidade.
O design das CBDCs também apresenta dilemas. Elementos importantes, como limites de uso, a escolha entre sistemas centralizados e descentralizados e a integração tecnológica, serão fundamentais para definir sua eficácia e aceitação.
Em economias emergentes, as CBDCs têm o potencial de ampliar a inclusão financeira, enquanto em economias desenvolvidas o foco tende a ser maior no aumento de eficiência do sistema financeiro.
Embora as CBDCs prometam avanços significativos, sua adoção requer cuidado. A rastreabilidade inerente a essas moedas, por exemplo, pode fortalecer o combate a crimes financeiros, mas também levanta preocupações sobre a privacidade individual, especialmente em contextos onde o controle estatal é mais rigoroso.
Garantir que o design preserve liberdades individuais sem comprometer a segurança será um dos principais desafios para os bancos centrais, e algo que a população deve estar atenta.
Diante dos benefícios e riscos identificados, é mister que o desenvolvimento de futuros projetos de CBDCs siga uma abordagem baseada em evidências concretas. A realização de pilotos e pesquisas detalhadas deve continuar sendo a estratégia central, permitindo ajustes que atendam às especificidades de diferentes mercados e populações, e que não haja riscos aos direitos de liberdade dos cidadãos.
Fontes:
SHIN, Hyun Song et al. Central Bank Digital Currencies: Motives, Economic Implications, and the Research Frontier. Annual Review of Financial Economics, 2024.
INFANTE, Sebastian et al. Retail CBDC: Implications for Banking and Financial Stability. Annual Review of Financial Economics, 2024.
BANCO CENTRAL DO BRASIL (BCB). Drex: Real Digital. 2024. Disponível em:
BANK FOR INTERNATIONAL SETTLEMENTS (BIS). CBDCs beyond borders: results from a survey of central banks. 2021. Disponível em: