Não era à toa o desconforto que o mercado financeiro doméstico vinha mostrando em relação aos riscos fiscais. O anúncio do governo no início da tarde ontem, de que pretende usar parte dos recursos do Fundeb e para pagamento de precatórios para bancar o novo programa social, o Renda Cidadã, pareceu um déjà vu. E esse sentimento elevou a desconfiança sobre a deterioração das contas públicas.
Os investidores viram na “pedalada” bolsonarista um “jeitinho” para não furar o teto dos gastos em 2021, mas desconfiaram do uso dessa contabilidade criativa para financiar despesas recorrentes, desviando a finalidade de determinadas verbas - seja retirando da educação ou usando instrumentos de dívida, que em alguma momento se converte em déficit fiscal. E tudo isso pode provocar controvérsia jurídica.
Em reação, o Ibovespa retrocedeu aos 94 mil pontos, caindo quase 2,5%, enquanto o dólar disparou e só não foi além de R$ 5,65 porque o Banco Central precisou intervir, vendendo moeda à vista - o que não acontecia há pouco mais de um mês. Já a curva de juros futuros recompôs prêmio, colocando em xeque a postura suave (“dovish”) do BC na condução da Selic e já antecipando o início do ciclo de aperto monetário - a doses mais cavalares.
O problema é que o presidente Jair Bolsonaro gostou de ser populista, após ver sua popularidade atingir os melhores níveis do mandato, como reflexo do auxílio emergencial pago aos mais afetados pela pandemia de coronavírus, que vai se tornar permanente. Mas o X da questão é que o governo simplesmente não tem de onde tirar dinheiro, pois a lei do teto de gastos criminaliza a possibilidade de o Estado fazer política fiscal expansionista.
Para piorar, ainda não houve um acordo com o Congresso sobre o envio da proposta da reforma tributária e a criação de um novo imposto sobre transações financeiras, nos moldes da extinta CPMF, sequer foi citada ontem. Ou seja, o governo encontrou fontes de financiamento para gastar mais, ao invés de cortar as despesas, e ainda segue sem dizer como irá melhorar as receitas.
Tudo isso deixa evidente que Bolsonaro está mais inclinado ao Centrão, de olho nas eleições de 2022. O ministro Paulo Guedes estava lá, na hora do anúncio, mas perdeu espaço depois de ter sido desautorizado em falar do já sepultado Renda Brasil. O relator do Orçamento de 2021, senador Márcio Bittar, foi o responsável pelo novo programa social - e suas manobras criativas.
Mas há quem diga que o governo pode mudar de ideia e abandonar a rolagem de precatórios, de modo a mostrar que mantém o compromisso fiscal, após a reação negativa no mercado financeiro e na classe política. Porém, o governo não deve desistir de criar o Renda Cidadã, que irá substituir o Bolsa Família, com um alcance mais amplo. Por isso, após a “sangria” ontem, os investidores devem ficar mais calejados.
Exterior potencializa pressão
A esses riscos políticos no Brasil soma-se o medo de uma segunda onda de contágio de covid-19 no hemisfério norte, que ameaça a retomada econômica global. Incertezas políticas, envolvendo um acordo comercial entre Reino Unido e União Europeia (UE) pós-Brexit e as negociações entre republicanos e democratas em torno de um novo pacote fiscal antes das eleições, também pesam no exterior, potencializando a pressão local hoje.
Os índices futuros das bolsas de Nova York amanheceram no vermelho, desconfiando da proposta de estímulo de US$ 2,2 trilhões apresentada ontem pela presidente da Câmara dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, pois os senadores republicanos já indicaram que só aprovam um novo pacote de até US$ 1 trilhão. Wall Street também monitora o primeiro debate presidencial entre o presidente Donald Trump e o rival Joe Biden, à noite.
As bolsas europeias também abriram no terreno negativo, após o mundo ultrapassar a marca de 1 milhão de óbitos por coronavírus. Na Ásia, a sessão foi sem brilho, com leves altas em Xangai e em Tóquio, enquanto Hong Kong caiu. Nos demais mercados, a libra e o euro avançam, em meios às esperanças de que os britânicos irão evitar um divórcio litigioso com o bloco europeu, enquanto o petróleo orbita na faixa de US$ 40 por barril.
Inflação em destaque
Dados de inflação no Brasil estão em destaque na agenda econômica desta terça-feira e deve reforçar a pressão nos preços sentida no atacado. Primeiro, será conhecido o IGP-M de setembro, que deve disparar 4,4% só no mês, acumulando taxa de quase 20% desde igual período do ano passado. Os números efetivos serão conhecidos às 8h.
No mesmo horário, sai o índice de confiança do setor de serviços, que foi o mais afetado pelas medidas de combate ao coronavírus. Depois, é a vez do índice de preços ao produtor (IPP) em agosto (8h), que deve mostrar os sinais de acúmulo de pressão inflacionária. Já no exterior, destaque apenas para índices de confiança nos EUA e na zona do euro.
No fim do dia, a China anuncia o índice dos gerentes de compras (PMI) do setor industrial neste mês.