Olho para os ovos de chocolate já decorando as gôndolas do supermercado e lamento: a Páscoa será mais cara. Os preços do cacau disparam no mercado internacional. Depois de sobreviver com dificuldades à lista de material escolar, facilmente confundida com uma lista telefônica, o pai de família agora calcula os prejuízos da Paixão.
Eu não sei como rola na sua família, mas lá em casa a gente faz assim: esconde os ovos das crianças e coloca umas pegadinhas de coelho como rastro (melhor avisar a patrulha woke: não são pegadas de coelho de verdade). Como são três filhos com razoável diferença de idade, os mais novos contam com um auxílio verbal durante a caça ao tesouro. Se caminham na direção correta, estimulamos: “tá quente… tá muito quente agora…” já se se afastam do esconderijo, alertamos: “tá frio… ih, esfriou muito.”
O mais velho fica em desvantagem informacional, claro, porque os outros se beneficiam daquele direcionamento vocal. Um pequeno sopro para conduzi-los em direção ao triunfo. É uma tentativa de promovermos a equidade vertical. Os diferentes precisam ser tratados de maneira diferente. Caso contrário, a maior experiência e o desenvolvimento cognitivo do mais velho tornariam o jogo muito injusto. A verdadeira meritocracia há de considerar as condições de partida.
Evidentemente, isso só acontece porque não estamos diante de um ambiente que deveria perseguir o mesmo acesso à informação a todos, que pressupõe isonomia a seus participantes e requer a publicidade e a simultaneidade de dados relevantes.
Na semana passada, viralizou entrevista de David Einhorn a um podcast da Bloomberg, em que o fundador da Greenlight Capital basicamente decretou o fim do value investing clássico. Segundo ele, como o dinheiro migrou muito para os fundos passivos, que, por construção, não têm qualquer opinião sobre valor ou qualidade empresarial, tudo agora se resume a uma tentativa de adivinhação sobre o preço daqui a 15 minutos. Não há mais relação direta com os fundamentos operacionais, econômicos e financeiros. Aquilo que está subindo atrai atenção dos fundos de momentum e Trend following, que ficaram gigantescos, e continua subindo quase indefinidamente a partir dessa maior demanda marginal. O caro fica cada vez mais caro, o barato vira uma eterna value trap.
Talvez haja algum exagero nas declarações, mas elas apontam na direção correta. Há vícios em curso no mercado tornando muito mais complexo e nuançado o jogo do value investing clássico.
Hoje, os CTAs, basicamente fundos seguidores de tendência, estão gigantescos, numa escala incomparável frente aos fundos de valor clássicos. São eles que ditam preços, em especial no curto prazo — ocorre que “curto prazo” para economista é uma definição platônica, não se refere a um horizonte temporal cronológico estrito; o alerta original permanece: o longo prazo pode demorar mais tempo para chegar do que você pode suportar sem liquidez.
As variações são claramente desproporcionais a uma verdadeira mudança nos fluxos de caixa de hoje até o infinito trazidos a valor presente por uma taxa de desconto apropriada. Em outras palavras, o valor intrínseco de uma companhia pode mudar pouco, mas a variação do preço da ação é enorme. Com CTAs enormes e fundos de ações pequenos, importa muito mais uma tentativa de antecipar qual é a próxima notícia do que propriamente quanto mudou o valor justo da empresa.
Não estou dizendo que os mercados não deveriam se mover na margem, a partir justamente da notícia marginal. O buraco é mais embaixo. Tenho observado uma dinâmica mais complexa: se uma empresa vai reportar uma próxima notícia negativa, sua ação cai desproporcionalmente frente àquilo que representaria de diminuição de seus fluxos de caixa. Tudo vira: se o próximo resultado é ruim, venda; valuation não é mais driver.
A coisa parece um pouco pior no Brasil. Há razões para isso.
A primeira delas é a falta de profundidade e liquidez de nosso mercado. De repente, entra um único sujeito shorteando e isso é suficiente para dizimar o preço da ação. Não há comprador marginal, porque o gringo está vendendo agora e os institucionais locais só tomam resgate.
A indústria de fundos de ações brasileira foi solapada desde julho de 2021. Isso vale tanto para o tamanho quanto para a qualidade de muitas gestoras — pessoas e instituições formidáveis e com histórico muito vencedor sofreram pesadamente com resgates. Sócios principais saíram do negócio em alguns casos; em outros, ficaram ricos demais, estão mais velhos e com outros interesses, sem a mesma dedicação de antes. Em muitas situações, o segundo escalão desmotivou-se com a remuneração dos últimos anos e a falta de perspectiva deixada pela distante marca d’água para pagamento futuro de taxa de performance. Então, você tem o fundador e uma distância enorme até o restante de sua equipe, muito mais júnior agora e com pouco tempo de rua. Sobram MBAs, falta street smartness.
Calma que vai ficar mais feio.
A ideal original do value investing residia em tratar ações como empresas, estimar o valor justo dessas empresas e comparar com seu preço atual. Se o preço estivesse muito abaixo do valor intrínseco, projetado com conservadorismo e sob a devida margem de segurança, seria uma oportunidade de compra. A essência do processo exigia apropriar-se de uma assimetria de informação em favor do analista. Supostamente, ele seria capaz de identificar melhor do que a média do mercado o valor intrínseco daquele ativo. Assim, percebendo a ineficiência e a distorção, poderia ter um lucro extraordinário e sistemático.
Aí você já percebe que, com o desenvolvimento do mercado em direção à maior eficiência, com mais players profissionais arbitrando informação e modelagem, mais acesso à capital etc, o jogo já ficaria mais difícil.
O problema fica muito maior, no entanto, porque essa vantagem informacional não está necessariamente acontecendo por maior diligência, capacidade de análise ou modelagem superior. Hoje há, de maneira institucionalizada, um tratamento não isonômico em termos informacionais conferido a determinados players. Em resumo, se você está entre os amigos do rei, acaba tendo acesso antes a informações relevantes das companhias.
Claro que tudo é feito sob uma roupagem lícita, borderline, para parecer coisa de gente fina, elegante, sincera. Nenhum departamento de RI liga para o gestor e fala: “anota aí que o lucro vai ser R$ 250 milhões, enquanto o mercado tem R$ 100 milhões. Saia comprando na frente”. Bom, ao menos não que eu saiba.
A dinâmica é mais cheia de nuance, sutil, respeita o rito legal. Está mais na esfera ética e moral do que propriamente no campo da ilegalidade, embora, como as reuniões costumam ser presenciais e em salas fechadas, não se possa afastar a hipótese de certos cruzamentos de limites, seja de maneira deliberada ou mesmo por algum descuido momentâneo típico da espontaneidade de conversas ao vivo.
Conto uma história real, que acaba de acontecer, para ilustrar o argumento. Preservo o nome dos envolvidos porque tenho juízo, três filhos pra criar e uma mãe viúva dona de casa.
Há algumas semanas, olhei para a planilha de cotações e identifiquei uma ação de nossa cobertura caindo cerca de 10%. Procurei notícias na imprensa, no site de RI, CVM, terminal da Bloomberg, Broadcast, Valor Pro, pegadas de coelho… não vi nada. No dia seguinte, outra queda importante. Sem novidades públicas ainda. Alguns dias depois, em conversa com um grande amigo gestor, descobri. A tal empresa havia feito um follow-on no ano passado. Tinha atraído os bons value investors, gente que faz conta, de longo prazo, competente. Mas aí, quando o book estava praticamente fechado, entraram os Hedge funds topando pagar cerca de 5% pra cima. Certo ou errado, a companhia optou por levantar uma graninha a mais. Foi alertada do curto prazismo da turma e de que, ao primeiro solavanco, venderiam. “Não, mas somos muito próximos das casas; inclusive sou amigo pessoal lá de um dos gestores.”
Ocorre que a realidade operacional da companhia veio pior do que ela mesma esperava. As dificuldades de capital de giro se impuseram além do contemplado. As sinergias (sempre elas) não vieram. “Hmmm, vamos frustrar nossos investidores.” Como não se pode desagradar os amigos do rei, “precisamos avisá-los.” Assim começam as reuniões de “quente e frio”, neste caso com o “quente" dando lugar ao “gelado”. As primeiras conversas começam com os cariocas, sempre mais espertos, que obviamente saem vendendo na frente. Depois, a coisa chega na Faria Lima. Outra derrocada. Enquanto você piscava, a ação caiu 30%.
Veja: embora esse seja um caso importante, a crítica não é específica. Não se trata de uma companhia, de uma situação, de um gestor, de uma pessoa. O tal “quente e frio” que os gestores e analistas fazem com as empresas nos interregnos de divulgação de resultados virou coisa institucionalizada, uma prática corriqueira de mercado. Gestor fala da parada em podcast viral, algo como: “a gente bate os números com as empresas agora em janeiro, faz aquele famoso quente e frio.” Bom, se você sabe antes de mim que o resultado de determinada empresa está quente, você compra na hora. Não porque goza de maior capacidade analítica ou competência, mas simplesmente porque recebeu uma “info quentinha” (ou fria, se for o caso). Queiram me desculpar, mas isso não é value investing. Isso é apropriação indébita de assimetria de informação.
Outra anedota capaz de ilustrar o absurdo em que chegamos. Conversando com um outro gestor na semana passada, ele me confidenciou que sua mais recente técnica de trading envolve o seguinte: agora, sua gestora se antecipa ao Corporate access. Ele descobre que determinado banco ou corretora vai promover um encontro com um diretor ou acionista relevante de uma determinada empresa. Como outros fundos estarão presentes na reunião (privada, claro), ele sabe que poderá haver compra marginal a partir daquele encontro. Então, ele compra na frente e soca depois. Segundo ele, tem funcionado na média. Retornos extraordinários positivos! Agora temos os fundamentalistas, os analistas técnicos e os traders de Corporate access.
E para corroborar a saúde fragilizada dos nossos value investors, numa importante conferência recente, um grande gestor de ações trouxe o argumento de que, com o retorno, a liquidez e a ausência de volatilidade das LCIs e LCAs, ele se viu forçado a alterar a sua estratégia de investimento. Antes, ficava focado no fundamento das companhias e na convergência entre preço e valor intrínseco, uma atividade que requer um horizonte temporal de mais longo prazo. Agora, como os clientes sacavam se o retorno não viesse logo ou diante da primeira volatilidade, ele se via obrigado a focar em retornos de curto prazo. Temos um novo nome para style drift, quando o gestor ou o analista começa a divergir muito de sua vocação, de seu círculo de competência, de seu propósito original ou até mesmo de seu mandato.
Entre ganhar dinheiro no longo ou no curto prazo, suspeito que poucos escolheriam a primeira opção. O value investor recorre ao longo prazo simplesmente porque é (quase) impossível ganhar no curto, quando há muito mais aleatoriedade e pouca evidência de convergência entre preço e valor intrínseco. Se ele já sabia ganhar dinheiro no curto prazo, por qual fetiche optava antes pelo longo prazo?
Algo está subvertido. Nas comunicações e lives abertas ao público, há enorme escrutínio da sociedade e do regulador (o que é correto, claro). Nada extraordinário pode ser falado, sob o risco de ofícios subsequentes. Nas reuniões privadas com os amigos da corte chegada em 1808, não há nenhum escrutínio e tudo pode ser falado. Os value investors tradam a próxima rodada de informação ou, ainda pior, uma reunião de acesso corporativo. Charlie Munger morreu foi de desgosto.