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Juros: O mal é bom e o bem, cruel

Publicado 07.03.2023, 08:41
Atualizado 09.07.2023, 07:32
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“Não fosse pela grande variabilidade entre os indivíduos, a medicina seria apenas uma ciência e não uma arte, ao mesmo tempo.” William Osler pensava, claro, em seu tratado de clínica médica e na criação da Universidade John Hopkins, no contexto da frase, mas bem que poderia falar sobre a Economia, mais precisamente sobre a política econômica.

Acaba de ser lançado o livro “A arte da Política Econômica”, de organização de José Augusto Fernandes, um compilado de relatos pessoais de formuladores da política econômica brasileira recente.

O título da obra me parece especialmente feliz. Com o perdão do aparente paradoxo, uma ciência aplicada só pode ser exercida em plenitude se combinada à arte. 

A atividade jamais poderá se dar a partir da mera aplicação direta e imediata de conhecimentos científicos em problemas práticos, sem o apoio da empatia, de intuições, de conhecimento tácito em prol de reconhecimento de padrões, de sensibilidade política, de interesse pela condição humana. Somente a partir da união do respeito à fronteira do conhecimento e à ciência com a sensibilidade prática poderemos avançar. A arte em sintonia com a ciência.

Para o caso da Economia, o exercício precisa ainda ser feito com muita humildade intelectual, porque a impermeabilidade do futuro e a idiossincrasia das interações dos agentes econômicos nos remetem a um ambiente de incertezas, probabilidades, eventos raros, surpresas, particularidades e cenários inesperados.

De um lado, há, por vezes, a frieza do pesquisador platônico, incapaz de admitir as fragilidades de suas descobertas. De outro, ocorre a apropriação do monopólio da virtude, normalmente pela esquerda, que atribui falta de empatia e de consideração pelas mazelas da população mais desfavorecida aos técnicos.

Vivemos o problema agora no Brasil.

Temos uma questão de difícil resolução para a política monetária. Mesmo as respostas mais técnicas e elaboradas da Academia encontram suas restrições.

O PIB desacelera em ritmo superior ao previamente contemplado e existe uma crise de crédito já em curso e com chances reais de degringolar, levando a um potencial processo de ruptura e histerese. 

Ao mesmo tempo, a inflação e suas expectativas mostram sinal de resistência. Em paralelo, carregamos um importante problema fiscal. Tanto o nível (cerca de 15 pontos percentuais acima de países pares) quanto a dinâmica da dívida/PIB preocupam, sem sermos capazes de enxergar uma trajetória crível à frente. Cresce a desconfiança sobre a moeda, as expectativas desancoram.

E, se antes tínhamos no formalismo do Copom o sistema de metas de inflação basicamente com o compromisso quase único de garantir a variação para o IPCA predeterminada pelo CMN, agora também existe o objetivo explícito, ainda que secundário, de zelar pelo pleno emprego, numa maior aproximação ao arcabouço da regra de Taylor.

Manter os juros tão altos por muito tempo pode ensejar uma grande quebradeira e uma crise financeira sistêmica. Você nunca sabe exatamente qual vareta pode ser retirada sem que o edifício todo desabe. Cortar os juros antecipadamente, em contrapartida, implicaria inflação e expectativas piores, com provável aumento da inclinação da curva de juros (disparada dos juros futuros mais longos, prejudicando investimentos ainda mais). Perderíamos a também âncora monetária, sendo que já estamos sem âncora fiscal. Nau à deriva.

Só haveria um caminho, imposto pela inexorável força da realidade: criar um arcabouço fiscal crível e reconhecer, na retórica e na prática, a formação de expectativas de juro, câmbio e inflação por meio de um processo técnico. Com a credibilidade das políticas fiscal e monetária restabelecida e com harmonia entre elas, o CMN poderia, tecnicamente, rever as metas de inflação à frente, com uma convergência a níveis mais baixos de inflação acontecendo de maneira mais lenta e suave, sem impor sobressaltos relevantes e aliviando as condições financeiras, o que inibiria a crise de crédito em curso. Teria sido criado o espaço para a tal empatia entrar em cena. Os juros cairiam e entraríamos em ciclo virtuoso. Lula tem todas as condições para criar esse ambiente. Goza da simpatia da comunidade financeira internacional, é um líder capaz de mobilizar massas e acordos políticos, foi eleito por uma Frente Ampla, já governou com uma política econômica ortodoxa.

Infelizmente, porém, parece insistir em apropriar-se do monopólio da virtude, como se os juros altos fossem resultado de uma canetada do cidadão bolsonarista infiltrado em seu governo. O bonzinho preocupado com os mais carentes contra os maldosos rentistas, um discurso cansativo e mentiroso, datado de 1966, quando os manuais da Cepal ou, pior, os livros vermelhos (que não são o de Carl Jung) ainda encontravam alguma ressonância na Academia.

Ao forçar a queda de juro com discursos inflamados, antecipar a regra fiscal para antes do Copom e cobrar politicamente um gesto público de Roberto Campos Neto, o governo Lula colhe mais juro, mais dólar e mais expectativa de inflação. Se o governo realmente quer juros mais baixos, precisa parar de falar a respeito, porque soa interferência e perda de credibilidade.

Lula erra ao dizer que foi eleito com votos e, portanto, pode fazer sua política monetária. De fato, ele pode – mas deve? 

Como gosta de resumir Pondé, quem se acha muito do bem é certamente do mal. O juro não vai cair por voluntarismo ou vontade política. Caetano estava certo: o mal é bom e o bem, cruel. Por ora, o juro alto é um mal necessário para domar a inflação. Arrumem o fiscal, parem de falar bobagem. Antes disso, nada feito. Deixem o "cidadão" trabalhar.

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