Lembra-se daquele papo de que a impressão de dinheiro do Banco Central dos EUA tinha como propósito baixar os juros, deixando o investimento na renda fixa pouco atraente para as carteiras de Wall Street, fomentando assim o financiamento de investimentos verdadeiramente produtivos, em capital fixo e na economia real de Main Street? Pois é, todos nós já ouvimos essa ladainha!
Eu venho colhendo dados para uma retrospectiva, abordando Quantitative Easings (1, 2 e 3), juros norte-americanos, ouro e dólar. Muita coisa confirma aquilo que eu já havia publicado em 2011, quando o dólar ainda estava cotado a R$ 1,75 (não deixe de ler aquele importante texto sobre dólar, inflação e endividamento).
Porém, hoje, ao compilar alguns dados e montar os gráficos, fiquei um tanto entretido com esse que vou mostrar abaixo, envolvendo os juros de títulos de 30 anos. Embora confirme aquela minha antiga expectativa de apreciação do dólar, ele contradiz todas aquelas louváveis justificativas veiculadas pelo pessoal do Federal Reserve e do FOMC (o COPOM lá dos EUA). O assunto me parece bem pouco observado, compreendido e, menos ainda, comentado pela maioria das pessoas, inclusive pela mídia e por muitos investidores experientes! Tem gente que andou comprando gato por lebre, ou seja, ao olhar apenas para a alardeada impressão de dólares do FED, eles optaram por investir em ouro e inflação, em vez de dólares e desinflação que eu já defendia anos atrás!
Antes de lançar seus olhos sobre esse revelador gráfico, é preciso compreender de forma bastante clara a relação entre o preço no momento da compra desses títulos de renda fixa e os juros pagos por eles. Esses títulos têm um valor prefixado para a data do seu vencimento, já definido na sua emissão pelo Tesouro. O que determinará sua rentabilidade (ou seus juros) será a diferença entre o preço pago na compra (que pode variar conforme as pressões do mercado) e o valor fixo do vencimento. Se a pressão compradora for crescente, ela baixa os juros, pois a maior demanda na compra encarece os títulos diminuindo o spread entre o preço de mercado e o valor final de vencimento (na sua maturidade). Por outro lado, quando há menos compradores interessados na oferta desses títulos do Tesouro, os preços se mantêm mais baixos, conferindo-lhes uma maior rentabilidade (juros mais altos).
Recapitulando: maiores compras elevam o preço dos títulos, baixando os juros. Não era isso que o Banco Central dos EUA dizia querer fazer com a impressão de dinheiro? Afinal, se os juros já estavam caindo e o preço dos títulos subindo com a grande demanda dos compradores que fugiam do risco, caso o FED imprimisse dinheiro para também comprar junto com os demais participantes do mercado, está claro que isso só aumentaria tanto a demanda como os preços dos títulos, reduzindo seus juros para perto de zero!
Se baixar os juros foi a intenção anunciada, a imagem abaixo não retrata tal intenção, mas sim a realidade dos fatos:
Observe que sempre que o FED entrou com um Quantitative Easing, comprando títulos do Tesouro de longo prazo no mercado secundário (não diretamente do Tesouro), o resultado foi um aumento dos juros de longo prazo. O inverso do proposto! Houve uma queda na demanda de compra! Como se os bancos e fundos dessem um passo atrás, deixando que o FED atuasse sem interferência na compra. Só nos intervalos entre cada QE, com o mercado de títulos de longo prazo finalmente à mercê dos próprios investidores, é que os juros realmente caiam, indicando uma demanda bem maior na compra desses títulos pelos bancos comerciais e outras instituições. (maior procura na compra = eleva os preços dos títulos = derruba os juros)
Mesmo a operação TWIST iniciada em setembro de 2011 e estendendo-se até dezembro de 2012, na qual o FED vendeu títulos com maturidade inferior a 3 anos e comprou títulos longos de 6 a 30 anos, teria na verdade interrompido a rápida e pronunciada queda dos juros de 30 anos no terceiro trimestre de 2011! Ora, o intuito do FED não era achatar a curva de juros? O propósito anunciado na época era "baixar os juros de longo prazo" para um nível mais próximo dos juros de curto prazo, diminuindo o spread entre eles. Bem, de fato, os juros de longo prazo aqui caíram mais um pouco, mas de forma MUITO mais lenta do que antes da operação TWIST!
Se na prática QE aumentava os juros de longo prazo, deixando-os mais atraentes como "estacionamento" para o capital ocioso e não produtivo dos bancos, então o FED, em vez de ajudar a economia baixando os juros, estaria na verdade elevando-os novamente e não incentivando o investimento na economia real (que permitiria abertura e ampliação de pequenos negócios, investimentos em capital fixo das empresas, financiamento e aquisição de bens de capital e geração de empregos). Se assim for mesmo, então qual a justificativa palatável ou explicação formal para essa atuação do FED? Claro que, informalmente, o Banco Central estava ajudando as instituições financeiras antes de tudo! Mas seria extremamente complicado explicar isso aos cidadãos comuns (aqueles 99% representados pelo movimento Occupy Wall Street que até George Soros aprovou) e justificar a impressão de dinheiro se isso na verdade interrompia a queda dos juros longos e os elevava novamente.
Veja que mesmo durante o último QE3 (entre setembro de 2012 e outubro de 2014) os juros só começaram a baixar de fato em 2014, depois que o FED começou a tirar seu time de campo através do TAPERING. Esse processo nada mais foi do que a saída gradual do FED, diminuindo sua impressão de dinheiro e sua compra de títulos a cada mês até sair completamente em outubro de 2014. Mas, se os juros passaram a cair com o FED se retirando das compras, então obviamente devem ter surgido mais instituições privadas e comerciais dispostas a comprar mais títulos do Tesouro e pagar preços mais altos por eles, baixando os juros novamente.
Resta aquela pergunta que ecoa insistentemente: como explicar a atitude do FED causando uma ALTA e não uma queda dos juros de longo prazo?
A cada novo QE, o FED afastava os outros compradores, diminuindo a pressão de alta sobre os preços dos títulos e permitindo que voltassem para níveis mais baratos e atraentes (pagando juros mais altos). Finalizado o QE, os bancos podiam voltar a comprar barato os títulos diretamente do Tesouro. Só que muitos bancos se amontoavam para fazer o "sacolão" no mercado primário de títulos. Essa pressão de várias instituições comerciais e privadas juntas concorrendo na compra ia elevando progressivamente os preços dos títulos (e diminuindo os juros). Com os títulos já mais caros e pagando juros menores, novamente o FED se propunha a imprimir dinheiro para comprá-los das demais instituições no mercado secundário. Outra vez os compradores abriam alas para que o Banco Central atuasse sem pressão de compra, até que os preços baixassem e os juros subissem, tornando a dívida do Tesouro mais barata e interessante para os bancos comerciais e fundos privados ao fim de mais um QE. O bom negócio de títulos baratos à venda no mercado primário estava novamente à disposição das instituições financeiras. O ciclo se repetia até que a demanda dos bancos e fundos encarecesse novamente os títulos, diminuindo os juros.
Os juros caem graças a um temeroso mercado, não graças ao FED imprimindo dinheiro. O Banco Central só lhes oferece a chance de comprarem novas barganhas!
O Banco Central tem se mostrado uma mãe para os bancos comerciais, lhes garantido preços melhores na dívida pública ao fim de cada QE. Com parte do fluxo de caixa, os bancos comerciais vêm comprando ações, além de mais renda fixa. O pudico FED considera desnecessário e imprudente agir diretamente na bolsa de valores (uma cautela que o já bastante desesperado Banco Central do Japão teve que abandonar) - seus afilhados (bancos e fundos) fazem isso gerando bem menos polêmica. A alta das ações talvez não desencadeie o "efeito riqueza" que estimularia um maior consumo da população, afinal boa parte dos consumidores da classe média deixaram de investir em ações nos últimos anos, mas os fundos de aposentadoria se veem em melhor situação com a alta da bolsa. Os balanços de fundos privados e bancos comerciais melhoraram com essa alta na renda variável, além de receberem juros mais altos dos papéis de renda fixa do Tesouro (barganhas adquiridas ao fim de cada Quantitative Easing).
Alguém se lembra daquele investimento bilionário em ações do Bank of America feito em 2011 pela Berkshire Hathaway de Warren Buffett? Foram US$ 5 bilhões investidos no banco comercial. Semanas antes do FED anunciar a operação TWIST evitando que (1) o banco pagasse cada vez mais caro pela renda fixa do Tesouro e que (2) as ações e a bolsa despencassem novamente. O velho "mago de Omaha" é bem mais alerta e rápido no raciocínio do que a maioria de nós, mais novos e crédulos naquele papo furado sobre o FED "baixar juros" com Quantitative Easings.
É evidente que a evolução do índice de preços ao consumidor deve ser levada em conta quando os juros nominais da renda fixa são negociados. As expectativas de inflação, desinflação, deflação ou reflação são ponderadas no momento da compra de títulos. Assim, para uma visão retrospectiva da sequência de cada período (com e sem Quantitative Easings) eu entrei no website do Tesouro dos EUA a fim de examinar as curvas de juros históricas, nominais e REAIS, pois essas últimas são bem mais importantes e representativas.
As curvas de juros reais dos títulos de 5 até 30 anos estão representadas à direita nos gráficos abaixo (e os nominais à esquerda). Levando em conta esses dados, podemos ver que a falência do Lehman Brothers lançou a economia ao pânico. Com a rápida queda no índice de preços ao consumidor, os juros reais subiram (computando a desinflação/deflação), apesar dos juros nominais caírem. Naquele cenário, imprimindo dinheiro e comprando principalmente papéis lastreados em hipotecas de imóveis, o FED realmente conseguiu baixar os juros reais com seu QE1.
Em QE1, o FED comprou mais papéis lastreados em hipotecas de imóveis do que títulos do Tesouro, como podemos ver aqui:
Mas veja que nos períodos seguintes, tanto os juros nominais como os reais caiam sem a intervenção do FED.
Com QE2 em novembro de 2010, o FED volta a imprimir dólares, mas os papéis comprados dessa vez foram títulos do Tesouro (confira novamente aquele gráfico acima com as adições na carteira do Banco Central divididas entre títulos do Tesouro e papéis lastreados em hipotecas). Daí em diante, os Quantitative Easings só impediram a queda dos juros longos, tanto nominais como reais, passando sim a aumentá-los.
O TAPERING de 2014 só permitiu que os juros caíssem por sinalizar que o FED já estava deixando de interferir no mercado e na base monetária.
Mas e aquele discurso oficial do FED baixando juros?... Não seria mais uma conversa para boi dormir?... Com certeza Wall Street passou a dormir melhor!
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