Certo dia, uma empresa X decide que quer executar um plano de crescimento ambicioso. Isso inclui abrir várias lojas, aumentar os investimentos e explorar novas geografias.
Então, essa empresa vai até um banco de investimentos e pede que eles estruturem uma captação significativa no mercado, de alguns bilhões.
O banco de investimentos prepara lindas apresentações de PowerPoint com muitas setas para cima, indicando que a receita vai parar na lua. Para isso, cobra um percentual da emissão.
Captação de recursos para empresas
Esse banco tem também uma área interna de Análise de Ações, conteúdo distribuído gratuitamente aos clientes. Seria muito ruim para os negócios se esse banco fizesse uma análise ruim da empresa, não é mesmo?
Ainda bem que a empresa X é ótima e vai crescer muito. Assim, poderão fazer um lindo relatório com a recomendação de compra!
Para conseguir taxas mais gordinhas, o banco de investimento coloca a garantia firme, comprometendo-se a distribuir toda a emissão.
Poderia alocar, quem sabe, em fundos dos clientes próprios, ofertando a excelente oportunidade e já pegando uma taxa de administração pela gestão desses recursos.
O fundo do banco investe em crédito privado, em emissões como a da empresa X. A taxa da emissão da debênture X fica em torno de 110% do CDI, mas como o gestor precisa ser remunerado, o investidor final acaba recebendo apenas 104% do CDI.
Mas veja bem, o fundo tem liquidez diária, o que o torna um excelente produto quando comparado ao Tesouro Selic, não é mesmo?
Todos dessa indústria seguem suas vidas muito felizes...
A empresa X captou os bilhões que precisava para o seu agressivo plano de expansão.
O banco de investimento abocanhou altas taxas de estruturação da emissão.
O gerente vendeu um produto da casa para o cliente final e abocanhou a sua comissão.
O gestor do fundo recebeu sua taxa de administração.
O cliente final está recebendo 104% do CDI com liquidez diária, ao invés de 100%.
Todo mundo está feliz!
Até que vem uma crise econômica…
Calote no crédito privado
Aquele plano de expansão da empresa X se torna desafiador, começa a queimar todo o caixa e não trazer os resultados esperados.
A empresa não consegue desacelerar, pois se comprometeu com o agressivo plano de crescimento.
A alavancagem se torna difícil demais de lidar. Começam os prejuízos no balanço. A empresa suspende o pagamento das dívidas.
Meu Deus, e agora? Será que todo mundo vai perder?
O banco de investimento já pegou o seu fee de estruturação e colocação e não tem nada a ver com isso.
O gerente também já levou a sua comissão e não tem nada a ver com o prejuízo.
O gestor, infelizmente, terá que escrever uma carta triste para os seus clientes, dizendo que sente muito pelos prejuízos da empresa X. No entanto, no bolso dele, já recebeu sua taxa de administração, 6% do CDI por todo esse tempo.
A própria empresa X termina valendo a mesma coisa que valia antes da injeção de bilhões no caixa.
Quem será que perdeu nessa história?
Obviamente, o investidor.
O investidor é o único que realmente vai perder, terminando com menos dinheiro do que tinha inicialmente. O investidor levou todo o calote. Tudo isso porque ele queria render 4% a mais do CDI na sua reserva de emergência.
Ele pagou toda a conta da indústria.
Essa história pode parecer fictícia, mas a essa altura você já sabe que ela não é.
Não só porque o mercado não para de falar no caso Lojas Americanas (BVMF:LAME4) (BVMF:AMER3), mas porque agora você já entende um pouco mais como o mercado financeiro funciona.
Ele pode ser um facilitador de financiamento para diversas empresas que investem em um futuro melhor para o país, juntando poupadores com empreendedores e multiplicando.
Mas ele pode também ser uma grande ratoeira de desavisados. Prontos para ligar os pontos de um plano perfeito de caça-níqueis.
"Ah Marilia, mas o caso de Americanas não foi bem assim…"
Eu estou falando do mercado como um todo. De como a indústria funciona.
Isso não acontece apenas com crédito privado!
Acontece também com IPOs, fundos imobiliários, private equity...
Eu poderia citar inúmeros casos de fundos imobiliários que são completos lixos tóxicos, que serviram apenas para desaguar porcarias de balanços das empresas para investidores desavisados.
Eu poderia citar inúmeros IPOs ou primeiras e segundas rodadas absurdas de private equities que serviram apenas para financiar compra de concorrente barato para justificar crescimento.
O sistema não é fácil e sempre teremos bons e maus profissionais.
Ser independente não é fácil
Por tudo que eu já vi, eu realmente acredito que independência ajuda muito a minimizar os problemas de incentivos errados.
E não pense que é fácil ser independente.
Você não imagina quantos processos eu já tomei por não recomendar um banco ou empresa e quantas ligações constrangedoras eu já recebi por conta de uma análise negativa.
Mal sabe você a violência verbal e física (sim, física) que eu e meus sócios já recebemos por denunciar investimentos feitos fora dos preços justos de mercado nas redes sociais.
Por tudo que eu já vivi, sei que a CVM não dá conta de ser o “xerife” que o mercado precisa. Ela precisava ter 10 vezes o tamanho que tem. Dado isso, faz o melhor que pode.
Você tem que confiar em si mesmo e no seu conhecimento.
Além disso, tem que conhecer pelo menos um pouco. Eu sei que pareço uma vitrola quebrada quando digo isso, mas é porque é realmente importante.
O mercado é, sim, um lugar de multiplicar o capital se isso for feito com parcimônia, alocação estratégica, risco controlado, independência e diligência.
Não significa que você vai ganhar sempre. Impossível.
Significa que você não vai ser o pato da história, e este artigo é sobre isso.
O ganho é deles, o risco é seu!