You may say I am a dreamer, but I am not the only one.
Segundo Aswath Damodaran, investir é comprar algo por menos do que aquilo vale. Isso pressupõe, claro, a capacidade de se identificar o preço da compra e o real valor do ativo (objeto em questão). O primeiro é conhecido, basta olhar o preço da tela. O segundo não pode ser observado. Ele precisa ser estimado. Então, como fazemos?
Há duas formas típicas de se calcular o tal “valor”, para depois compará-lo ao preço — se você calcular o valor e ele for substancialmente superior ao preço, você compra; se for inferior ou igual, você vende, atrás de oportunidades melhores. Observação rápida: note que aqui não há qualquer referência temporal. A pergunta “este investimento é para curto, médio ou longo prazo?” sequer faz sentido nesse arcabouço. Você compra apenas porque o preço está abaixo do valor intrínseco estimado e espera uma convergência entre as coisas. Em quanto tempo? Não sei. Ninguém sabe.
De acordo com o próprio Benjamin Graham, pai dessa conversa toda, há uma espécie de magnetismo misterioso entre o valor intrínseco e o preço. Um converge para o outro em algum momento. De novo, qual momento? No momento em que os demais agentes econômicos perceberem o mesmo valor intrínseco que você, ou seja, quando for desfeita a assimetria de informação. Daí decorre uma coisa essencial para o investimento em qualquer ativo de renda variável: o fator tempo não pode estar na conta. Em outras palavras, nenhum dinheiro deve ser destinado à Bolsa se você precisará dele no mês ou no ano X, porque o tempo da tal convergência aqui debatida pode ser muito superior a X. O tempo do Deus mercado é diferente do tempo dos homens.
Tudo reside, portanto, em calcular adequadamente o valor e esperar. Para isso, tradicionalmente se usam duas abordagens. Na primeira, adota-se uma perspectiva intrínseca, ou seja, o ativo contra suas propriedades particulares, seus fluxos de caixa projetados de hoje até o infinito trazidos a valor presente por uma taxa de desconto apropriada (resumindo, uma empresa vale tudo o que ela gera). Na outra, que pode — e deve — ser complementar à primeira, vamos para uma abordagem comparativa, em que se fazem paralelos entre a respectiva empresa e outras parecidas, contempladas, claro, as idiossincrasias de cada uma. Didaticamente, seu apartamento pode ser avaliado pela estimativa de todos os aluguéis que ele pode gerar de hoje até o infinito (a valores de hoje, claro) ou pela comparação com apartamentos, no mesmo prédio ou em bairros semelhantes, em estado parecido de conservação.
Sejamos francos, “quimono aberto”, como se diz por aí. Se você entendeu bem o primeiro método, já deve ter percebido sua fragilidade epistemológica. Como acessar os fluxos de caixa futuros se eles estão, bem, como eu posso dizer… no futuro? Isso é normalmente desafiador, em qualquer cenário. Agora, pense no quadro atual. Não sabemos o impacto da quarentena, não sabemos quanto tempo passaremos de quarentena, se alguém vai quebrar no meio do caminho (não lhe parece estranho que ninguém tenha quebrado ainda?), se podemos confiar na China, como fazer nos EUA (Nova York parece um caos), como voltaremos da quarentena, como será na volta — falo um pouco mais sobre a volta daqui a pouco.
Como vamos estimar qualquer fluxo de caixa neste momento? “Ah, mas zere o fluxo deste ano. Pense mais à frente e calcule com margem de segurança.” Zerar? Por que zerar? Por que não negativo? E por que não muito negativo? Pensar mais à frente? Como se não sabemos sequer quem sai vivo dessa história? Sem querer ficar muito técnico na discussão, mas diante de tanta incerteza, qual taxa de desconto usamos no denominador para trazer os fluxos a valor presente? Com qual prêmio de risco você se sentiria confortável num cenário como esse? Rápido detalhe: diferente do que aparece nos modelos típicos, o prêmio de risco não é um parâmetro fixo, mas, sim, uma variável, cuja distribuição tem uma variância enorme e curtose alta (curiosidade: minha dissertação de mestrado é em prêmio de risco cambial brasileiro, com foco no período pós-maxidesvalorização de 99 e posso dizer que esse negócio pula pra cima e pra baixo feito uma cabrita). E, se a taxa longa brasileira abrir diante de uma potencial explosão fiscal, não teríamos um valuation necessariamente bem menor para as ações, mesmo desconsiderando todas as questões acima?
“Ah, então, vamos recorrer à análise comparativa de múltiplos, já que o fluxo de caixa descontado está mesmo complicado.”
Estamos andando em círculos, não saímos do lugar. De uma forma ou de outra, teremos de calcular lucros futuros, Ebitda, patrimônios. E tudo isso está invisível neste momento. Ao mesmo tempo, comparações entre pares necessariamente acabam morrendo em avaliações qualitativas do observador, disfarçadas, claro, de frieza da ciência sob o véu das planilhas aparentemente objetivas (o papel aceita qualquer coisa, sendo apenas a tradução quantitativa da subjetividade do planilheiro).
Como alguém pode dizer que a Bolsa está barata (ou cara, tanto faz) se simplesmente não dá para fazer conta? Talvez como nunca nos últimos 90 anos, a pergunta talebiana mais ontológica precise ser tratada obsessivamente, como um mote da nossa existência, dia a dia: How to live in a world we don’t understand? Como viver num mundo que não entendemos?
Se você não entende, não consegue calcular, não tem visibilidade, vai devagar, com prudência, responsabilidade, tateando.
Deixe-me ser um pouco mais rigoroso aqui. Não sou afeito a qualquer tipo de fundamentalismo — em suas mais variadas conotações. Eu topo comprar coisas que não entendo direito. De novo recorrendo a Taleb, X não é F(X). Você pode não compreender algo, mas ainda assim entender o impacto daquilo na sua vida ou no seu portfólio, e isso basta.
Eu topo uma boa aposta, no sentido não pejorativo de “aposta”, mais ligado à ideia de loteria como se estuda no Paradoxo de Maurice Allais. Você pode participar de jogos, o que é muito diferente de investimento, contanto que haja uma assimetria favorável a seu favor. Ou seja, você estima o máximo que pode perder e compara com o quanto pode ganhar, ponderando pelas respectivas probabilidades associadas. Se lhe for interessante, você participa. No fundo, isso é aplicar seu dinheiro com base nos conceitos de Valor Presente Líquido, a ponderação, trazida a valor presente, entre todos os cenário possíveis.
Qual o problema agora? Não é sequer possível fazer essa conta de assimetria. Qual é o pior cenário possível? Por favor, alguém pode me dizer? Não dá para saber até onde isso pode ir. Ponto final. Isso aqui envolve risco de ruína financeira e, portanto, eu não topo.
Curiosamente, o 1º de abril, tendo esgotado o rebalanceamento do fim de trimestre lá fora, parece revelar um encontro com a verdade depois da súbita recuperação dos mercados na semana passada. Futuros do S&P caem 3,75% enquanto escrevo, dólar sobe mais de 1% contra moedas emergentes.
Há vários alertas importantes nesta quarta-feira. Começando talvez pelo mais relevante: Donald Trump alertou semanas muito duras à frente, trazendo um choque de realidade depois de uma inicial desconsideração sobre a gravidade do problema.
Howard Marks, tido como “guru de Warren Buffett” (embora eu considere esse termo depreciativo, na verdade), escreveu ontem que “os preços dos ativos parecem apreçados de forma justa para um cenário otimista, mas não oferecem espaço suficiente para a possibilidade de uma piora nas notícias”. Em outras palavras, o cenário otimista parece embutido nos preços atuais. Do meu lado, não me parece que devamos contar com o cenário otimista num quadro como esse. A afirmação de Howard me parece bastante importante, pois, semanas atrás, no auge do pânico de março, ele havia se colocado mais positivo, dizendo que estava comprando ativos. A alta da semana passada e o desenrolar dos fatos podem ter forçado uma (acertada) mudança de opinião.
Jeffrey Gundlach, uma das grandes referências do mercado de bonds nos EUA, deu entrevista dizendo que espera um novo teste das mínimas de março ao longo deste mês. Jim Rogers, ex-sócio de George Soros, alertou para o pior bear market da sua vida nos próximos anos. Mohamed El-Erian, ex-Pimco, trouxe renovadas preocupações com falências: “Infelizmente, alguns problemas de liquidez vão se tornar problemas de solvência para algumas empresas. A retomada da economia será muito complicada, não temos uma linha do tempo, um cronograma. Investidores precisam ser resilientes em tempos como esses”.
Aos poucos, vão se avolumando estimativas revisadas para PIB e lucros corporativos, cada vez piores — a Goldman Sachs, por exemplo, fala em queda de 34% do PIB americano no segundo trimestre anualizado, com retração anual indo a 6,2%; absolutamente brutal.
Ao mesmo tempo, novos estudos científicos sobre a importância do lockdown, sua duração e a volta começam a surgir. Pelos papers, o publicado hoje mesmo por Saulo Bastos e Daniel Cajueiro, de título “Modeling and forecasting the Covid-19 pandemic in Brazil”, fica um pouco mais clara a dificuldade de se fazer um lockdown curto e depois retomar a “vida normal”. Nos últimos dias, cresceu a ideia de que talvez tenhamos de ficar dois meses sob distanciamento social. Depois, a volta seria aos poucos, permeada por idas e vindas. Talvez até contrariamente à intuição, precisaríamos infectar a população para imunizá-la (ou uma boa parte dela, talvez 50%), pois simplesmente não há alternativa, não há o que fazer. Esse processo, contudo, precisaria ser lento e gradual, para não sobrecarregar o sistema de saúde e salvar o maior número possível de vidas. Nesse cenário pessimista, teríamos dois meses de lockdown completo, seguido de alguns meses ainda de “entra e sai” do confinamento. Isso não me parece bom.
Como brilhantemente resumiu Howard Marks em seu último memorando, “você pode ou não achar que deve aumentar o caráter defensivo das suas carteiras diante dos desdobramentos potencialmente negativos à frente. Mas a coisa mais importante é estar preparado para responder a isso caso ocorra e tirar proveito dessas quedas e oportunidades futuras”.
É rigorosamente o que temos feito para os nossos portfólios.