Alheio ao novo colapso vivido em Manaus, onde pacientes com covid-19 agonizam e morrem afogados a seco, no episódio mais recente do longo drama da pandemia no Brasil, o mercado financeiro doméstico ignora a falta de oxigênio e mantém o fôlego de alta dos ativos de risco, embalado pela “onda azul” do governo eleito nos Estados Unidos, onde a dívida se expande (porque lá pode) às custas de reerguer a maior economia do mundo.
A liquidez sem precedentes jorrada pelos principais bancos centrais globais, capitaneados pelo Federal Reserve, combinada com a expansão sem fim dos gastos por países desenvolvidos sustenta o prolongado rali, descolando da realidade os ativos - emergentes, principalmente - uma vez que o mundo ainda registra recorde de mortes e casos por coronavírus. Dizer o quê, se o jargão do mercado é que “contra fluxo não há argumentos”?
O fato é que Wall Street amanheceu decepcionado, com os índices futuros das bolsas de Nova York exibindo leves baixas, depois do modesto pacote anunciado pelo próximo chefe da Casa Branca, que acabou ficando na casa do trilhão - e não no plural, como esperado. O democrata Joe Biden detalhou ontem à noite que irá destinar US$ 1,9 trilhão para, enfim, combater a covid-19 nos EUA e, ao mesmo tempo, estimular a economia.
Segundo ele, serão destinados US$ 400 bilhões para conter a disseminação do coronavírus no país e ampliar a distribuição de vacinas contra a doença, além de US$ 1 trilhão para apoiar as famílias norte-americanas, que receberão cheques no valor de US$ 1,4 mil - valor superior aos US$ 600 no mais recente benefício fiscal. O valor do auxílio-desemprego também vai aumentar, para US$ 400, ante US$ 300 semanais.
A expectativa é de que esses estímulos reaqueçam o consumo nos EUA, principal motor da economia, alimentando o crescimento através do aumento de gastos e não pela retomada da produção (e do emprego e da renda) - e, assim, mantendo em operação a engrenagem do sistema financeiro. Tal mecanismo turbina os ativos de maior risco (e maior retorno), ao mesmo tempo em que afunda o preço do dólar, em nível global.
Drama Nacional
Aos olhos dos investidores estrangeiros, o Ibovespa está em promoção, o que explica o ingresso de quase R$ 15 bilhões em recursos externos em menos de duas semanas, sustentando a renda variável em nível recorde. Em dólar, a Bolsa ainda está cerca de 50% abaixo da máxima histórica, o que deve dar fôlego para novas altas - sem precisar da ajuda de países vizinhos, como é o caso da solidariedade do governo da Venezuela ao Amazonas.
Esse desempenho, porém, não se traduz, necessariamente, em uma desvalorização do dólar por aqui. Afinal, os investidores locais estão tirando proveito da volta dos “gringos” à Bolsa brasileira, travando suas operações com uma postura defensiva (hegde) no câmbio. Ainda assim, a moeda norte-americana já apagou os ganhos que vinha acumulando neste início de ano, voltando à faixa de R$ 5,20.
O movimento é explicado, em grande parte, à perspectiva de que a taxa básica de juros no Brasil deve subir antes do previsto, em meio ao acúmulo de riscos fiscais e inflacionários somado à inépcia do governo federal em relação à pandemia, com a demora na imunização da população contra a covid-19 avolumando a falta de medidas no combate à disseminação do coronavírus. E uma Selic maior deve ser o desfecho desse drama nacional.
É crescente a expectativa de que o Banco Central irá retirar do comunicado o trecho que se refere à ferramenta de orientação futura (forward guidance) sobre a Selic estável. A mensagem acompanhará o anúncio da decisão, ao final da primeira reunião deste ano do Comitê de Política Monetária (Copom). Ao final do último encontro do ano passado, o BC indicou que esse seria o primeiro passo antes do aperto.
Diante dos preços “salgados” ao consumidor - e não apenas de alimentos, mas também na conta de luz - e do risco de “furar” o “teto dos gastos” para socorrer os mais vulneráveis, ainda que sem espaço fiscal, é praticamente certa a chance de o Copom retirar o tal do forward guidance de juro estável na reunião marcada para a semana que vem. No encontro seguinte, estaria então aberta a porta para uma primeira alta no juro básico.
Há quem diga, porém, que o cenário é mais complexo e desafiador, em meio às batalhas políticas pelo comando das duas Casas no Congresso. Seja como for, pode ser prematuro fomentar a expectativa de uma alta da Selic tão logo, uma vez que o fim do auxílio emergencial em um momento de desemprego recorde combinado com novas medidas de isolamento social devem afetar novamente a economia, encurtando o fôlego da atividade para manter o ritmo de uma recuperação em "V".
Agenda tem dados de atividade
Aliás, dados de atividade no Brasil e no exterior recheiam a agenda econômica desta sexta-feira. Por aqui, sai o desempenho do varejo em novembro e a expectativa é de alta de 0,6% nas vendas, no sétimo mês seguido de alta. A mesma trajetória é esperada para o confronto anual, com o setor cravando o sexto resultado positivo seguido, de +4,40%.
Os dados efetivos serão conhecidos às 9h e devem ser estimulados pelas compras impulsionadas pela Black Friday. Antes, às 8h, tem o primeiro IGP do mês, o IGP-10. Já no exterior, destaque para os indicadores norte-americanos sobre as vendas no varejo em pleno mês de Natal (10h30) e sobre a produção industrial também em dezembro (11h15).
Ainda na agenda dos EUA, saem o índice de preços ao produtor (PPI) em dezembro e o índice regional de atividade em Nova York, ambos às 10h30, além dos estoques das empresas em novembro e da prévia da confiança do consumidor norte-americano em janeiro, ambos às 12h.