Autor principal: Licio da Costa Raimundo
Co-autores: Olivia Bullio Mattos e Saulo Abouchedid
Institucional: Grupo de Estudos em Economia Monetária FACAMP
Quanto mais a economia toma conta dos noticiários de TV, mais as pessoas se acostumam com a ideia de que alguns mercados sofrem oscilações constantes, como os mercados de ações, por exemplo. Outros mercados, no entanto, parecem estar firmemente ancorados em preços que pouco oscilam. Seja porque confiamos em “fundamentos”, seja porque acreditamos nas autoridades responsáveis pela supervisão de tais mercados, dormimos tranquilos sabendo que eles estão lá, nos fornecendo uma segurança tão em falta em outros aspectos da vida.
Pois, assim é com os mercados monetários. Temos certeza de que os bancos centrais sabem o que fazem, antecipam movimentos especulativos e mantém as taxas de juros no lugar onde elas deveriam estar, de acordo com os forward guidances das autoridades monetárias. Entre os dias 16 e 18 de setembro, entretanto, as certezas parecem ter sumido debaixo de nossos pés.
As taxas do mercado monetário interbancário de repos saíram dos esperados 2,25% ao ano para preocupantes 10% ao ano em apenas dois dias. O Banco Central norte-americano (Federal Reserve – Fed) foi obrigado a sair em socorro do mercado (e de sua própria reputação) de forma atabalhoada, na tentativa simultânea de reduzir a taxa de juros básica e entender o que havia acontecido. Ainda na semana passada, o Fed continuava injetando liquidez no sistema.
A taxa dos repos diz respeito ao custo de captação de recursos de curto prazo nos mercados de acordo de recompra. Nestes, são feitas operações de empréstimos overnight, isto é, de um dia para o outro, lastreadas normalmente por títulos públicos. No primeiro momento, a parte tomadora, que possui a carteira de títulos, vende-os para a parte credora, com o compromisso de recompra-los em um segundo momento, pagando uma taxa de juros (a taxa do repo). O bom funcionamento deste mercado privado é importantíssimo para instituições financeiras e investidores que dependem de financiamento de curto prazo.
Nas primeiras horas após a disparada da taxa, as primeiras análises apontavam para fatores conjunturais: o dia 16 de setembro é tradicionalmente data de recolhimento de impostos corporativos nos EUA. US$ 78 bilhões teriam sido sugados por essa via do mercado de reservas bancárias a conta do Tesouro Americano no Fed (que, nos EUA, faz as vezes de agente financeiro do Tesouro Nacional).
Além disso, outros US$ 52 bilhões seriam retirados do mercado naquele dia por conta de operações previamente programas de colocação primária de papéis por parte do Tesouro. Paralelamente, o Fed continuava seu movimento de quantitative tightening, iniciado em agosto de 2014, quando as reservas bancárias exibiam um total de US$ 2,7 trilhões, levando-as ao patamar de US$ 1,38 trilhão em agosto último. Tudo somado, o diagnóstico apontava que o mercado interbancário americano havia acusado o golpe e apresentado os sintomas de uma falta generalizada de liquidez.
Não desprezando os fatores conjunturais, convém, no entanto, perguntar-se: a retirada de US$ 130 bilhões (em um universo de US$ 1,3 trilhão) num único dia seria suficiente para fazer a taxa do interbancário ser multiplicada por quatro? Intuitivamente, dir-se-ia que não. Mas o fato é que foi exatamente isso que ocorreu.
A questão então passa a ser: quais foram as condições para que uma drenagem de pequena expressão levasse a uma reação tão contundente do mercado? A resposta precisa ser buscada em fatores estruturais.
Nas últimas duas décadas (notadamente a partir da crise asiática de 1997), países de todas as características (centrais e periféricos) passaram a adotar a prática de acumulação de reservas cambiais como uma forma de obter maior controle sobre o nível de flutuação de suas taxas de câmbio e efetivamente defenderem-se dos humores dos investidores de portfólio, sobretudo estrangeiros. Também as corporações passaram a adotar, já há mais de uma década, a prática de acumulação de caixa, exibindo cada vez mais elevados índices de liquidez.
Nos mercados financeiros, os atuais US$ 17 trilhões alocados em títulos públicos de longo prazo com prêmios nominais negativos não deixam margem à dúvida: a busca de segurança é, nesse momento, o critério norteador das decisões de investimento. Pois não seria diferente com os bancos. Esses também buscaram constituir um colchão de segurança, num claro de movimento de crescimento exponencial da preferência pela liquidez em todo o mundo.
Após a crise de 2008, a mega-operação de salvamento dos bancos e do sistema financeiro não conseguiu fazer com que o nível de crédito voltasse a exibir seu ímpeto pré-crise. Tanto nos EUA quanto principalmente na Europa, os bancos agindo de modo extremamente racional preferiram recompor seus níveis de reservas e restringir a expansão das operações de crédito, adotando uma postura mais conservadora.
O nível crescente das reservas bancárias voluntárias mostra isso com nitidez. A prática, adotada por alguns bancos centrais pelo mundo, de aplicar uma taxa de remuneração negativa às reservas voluntárias dos bancos apontava para o óbvio: os bancos relutavam em abrir mão da liquidez. A recente escalada da guerra comercial entre EUA e China acirrou os ânimos dos bancos para manterem-se líquidos. A interrupção de parte do fornecimento de petróleo pela Arábia Saudita foi o gatilho que faltava: a elevação da percepção de risco de liquidez dos mercados monetários, a escassez repentina de reservas e a disparada de seus preços.
O Fed fez o que pôde para tentar restabelecer a normalidade dos mercados. Prontamente acionou operações de repo e de open market (enferrujado, não utilizado há anos, que apenas funcionou em uma segunda tentativa de operacionalização). No dia 24, ofereceu US$ 30 bilhões ao mercado, que demandou US$ 62 bilhões, fazendo a taxa de venda de reservas subir dos iniciais 1,85% ao ano para um pico de 2,05% ao ano, ainda dentro da normalidade. Todos os sinais, no entanto, apontam para uma conclusão inequívoca: o mercado não quer mais reservas para poder se sentir mais seguro e emprestar mais; o mercado simplesmente está extremamente receoso em emprestar mais.