Por Luiz Antônio Dib e Marcos Avila (Especialista em Julgamento e Tomada de Decisão)
Para ajudar a responder essa pergunta, vamos começar com uma pequena fábula: “Era uma vez dois irmãos...
No primeiro dia do mês de março do ano de 2020, foi anunciada a primeira morte por Covid-19 nos Estados Unidos. Matt Colvin pulou com seu irmão Noah na SUV da família e eles foram às compras. Entraram nas lojas que viram pelo caminho: Walmart, Dollar Tree, Staples, Home Depot... O objetivo era comprar todo o estoque de álcool gel, máscaras e qualquer outra coisa que pudesse ser utilizada para lidar com a pandemia. Nos quatro dias seguintes, repetiram o ritual viajando mais de 2.000 quilômetros pelos estados do Tennessee e do Kentucky. Só que agora não mais na velha SUV, mas em um pequeno caminhão de aluguel. Imediatamente após a viagem, começaram a anunciar os produtos nas plataformas da Amazon (NASDAQ:AMZN) (SA:AMZO34) e do eBay (NASDAQ:EBAY) (SA:EBAY34). Um pacote de máscaras que fora comprado por dez dólares passou a ser vendido por até 120 dólares. O lucro médio inicial das vendas chegou a 1.000 %.
Antes de continuar, pare para refletir sobre o seguinte: você acha bonito o que os irmãos fizeram? Você teria feito o mesmo? E, sob uma ótica puramente econômica, aquela ação foi racional?
James Otteson achou bonito. O filósofo e economista norte-americano, professor da Universidade de Notre Dame e autor do livro ‘Os Fundamentos do Capitalismo’, concedeu entrevista em abril de 2020 sobre o assunto. O feito dos irmãos ganhara as páginas dos jornais, além de muitas críticas na mídia, mas Otteson afirmou que os irmãos fizeram algo natural e benéfico para a sociedade, embora parecesse “contra intuitivo”. Afinal, em uma situação de escassez, a demanda aumenta e se o preço não subir vai todo mundo correr para comprar. Por outro lado, se os preços subirem, só vai comprar quem de fato necessita. Além disso, o aumento nos preços incentiva os produtores a priorizarem o aumento da oferta e assim reduzir a escassez. Ou seja, a “calibragem” dos preços coordena a oferta e garante que os produtos estejam com quem mais precisa.
Otteson inclusive defendeu que essa solução de mercado dispensa a ação do governo e do sistema judiciário. O então presidente Donald Trump, que também soubera do feito dos irmãos pela mídia, estava defendendo uma legislação específica para coibir o que chamara de abusos. Outro professor famoso, Tyler Cowen, colunista da Bloomberg, também correu em defesa dos irmãos e contra a nova legislação, em um artigo de maio de 2020 publicado pela Promarket, da Universidade de Chicago. Para ele, embora a prática de aumento de preços (price gouging) seja impopular, os preços mais altos dão aos fornecedores incentivos para manter os produtos nas prateleiras e desencorajam a compra por pânico.
O único economista de renome que conseguiu explicar por que as pessoas leigas reagiram à história dos irmãos de modo tão diferente dos economistas foi um velho rebelde: Richard Thaler. Em artigo para o New York Times, no dia 20 de maio de 2020, ele argumentou que a sociedade não aceita que os preços subam de forma significativa em uma situação de emergência. Para ele o que estava em jogo, em uma única palavra, era simples: Fairness. Para nós faz-se mister traduzir: justiça, equidade, retidão, “fazer o que é certo”. Para Thaler isto é uma lei alternativa à lei econômica clássica da oferta e da procura. E, em alguns casos, muito mais verdadeira quando se quer entender como uma sociedade realmente funciona, não como os economistas acham que ela deveria funcionar. Junto com Daniel Kahneman e Jack Knetsch, Thaler já havia escrito sobre o tema no distante ano de 1986, no artigo ‘Fairness and the Assumptions of Economics’. É provável que Otteson e Cowen tenham faltado a essa aula.
Certamente os irmãos Colvin faltaram, pois eles se mostraram extremamente surpresos com a repercussão negativa de seu empreendimento. Depois que sua história acabou na mídia (e repercutiu nas redes sociais) a reação foi tão forte que a Amazon e o eBay suspenderam as vendas. Os irmãos amargaram um encalhe de dezessete mil garrafas de álcool gel, entre outros produtos, sem ter para quem vender. Finalmente, fizeram um acordo com a Corte de Justiça do Tennessee, onde estavam sendo processados, e doaram todo o estoque restante.
Ao fim de nossa fábula, o placar foi Economia Comportamental um a zero na Economia Clássica. Ou talvez tenha sido uma goleada, se pensarmos bem (o que diz o VAR?). Eu, você e todas as pessoas do mundo não somos racionais no sentido econômico tradicional. Nem o personagem Sheldon Cooper, da série ‘The Big Bang Theory’, uma espécie de Dr. Spock moderno, era perfeitamente racional. Para assim sermos, precisaríamos seguir em todos momentos de nossas vidas ao menos quatro premissas:
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As pessoas são egoístas (seu único objetivo em qualquer decisão é o atendimento de seus interesses pessoais);
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Emoções não influenciam as decisões (é uma variável absolutamente irrelevante);
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Nossa capacidade cognitiva, de aprendizado e acesso à memória, é ilimitada (processamos assim toda informação pertinente para qualquer decisão); e
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Nossas decisões seguem processos de otimização dos resultados (a expressão usual é “maximizar utilidade”).
Todos nós eventualmente desrespeitamos tais premissas em diversas decisões. Afinal somos homo sapiens, não homo economicus, esse ser fictício criado por economistas “clássicos” para que seus modelos possam funcionar e explicar alguma coisa do mundo. Nada contra modelos, todos eles são sempre uma simplificação da realidade e podem ser muito úteis, nos ajudando a focar em aspectos críticos ou permitindo fazer previsões aproximadas do que o futuro poderá trazer. O problema é confiar cegamente nos modelos, principalmente em situações onde já se sabe que as pessoas costumam “fugir” da racionalidade econômica.
Se você já se convenceu de não ser racional, que moral resta de nossa história? É importante notar que tudo que se aprende, por exemplo, em Finanças, tem por objetivo nos levar a tomar melhores decisões. Mas, os modelos e teorias pressupõem que as tomamos de modo racional (economicamente falando, seguindo as premissas). Esse mundo “ideal” de teorias normativas (e prescritivas) muitas vezes não se verifica na prática. Torna-se então importante pensarmos também em como as decisões são realmente tomadas, nas teorias descritivas desse processo. Ah, e nem sempre os modelos prescritivos efetivamente indicam o melhor caminho, existe espaço para decisões morais ou intuitivas. Diversos autores, como Daniel Kahneman no livro ‘Rápido e devagar: duas formas de pensar’, se aventuraram por esse caminho, digamos, “alternativo”. Isto é aplicável em Economia e Finanças, mas também em vários outros aspectos de nossa vida.
E, se você gostou deste singelo artigo, podemos nós trilhar o mesmo caminho, em artigos explorando novos aspectos da arte de fazer julgamentos e tomar decisões. Deixe seu comentário e participe desta conversa. Um forte abraço!
*Luís Antônio Dib é especialista e professor de julgamento e tomada de decisão do COPPEAD/UFRJ