Na noite de ontem (24) o presidente Jair Bolsonaro se manifestou, em rede nacional, sobre a crise gerada pela pandemia global de Coronavírus/Covid-19. Antes de entrar em detalhes, gostaria de lembrar a todos/as que a política exerce tremenda pressão sobre a economia, de modo que as atitudes do mandatário máximo da República podem e devem ser escrutinadas, analisadas e quando necessário, repudiadas. O episódio de ontem, que se liga a uma longa cadeia de berrações políticas, conseguiu – e existe aí um infeliz mérito – exceder todos os limites até então estabelecidos.
O presidente, de uma só vez, se colocou na contramão dos Governos Estaduais, Senado, Câmara dos Deputados, Judiciário, Organização Mundial da Saúde, praticamente todos os países do mundo, imprensa, Dráuzio Varela (!!) e seu próprio Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Detalhes à parte, a mensagem enviada à nação foi a de as medidas de isolamento generalizado são exageradas porque afetam, na ponta, o funcionamento da economia.
Hoje, o presidente propôs como alternativa o chamado “isolamento vertical”, no qual apenas pacientes de risco – idosos e pessoas com outras doenças – sejam mantidos em isolamento. De resto, a vida seguiria normalmente e buscaríamos nos precaver do contato. O que nosso mandatário não parece saber, ou mais provável, se recusa a entender, é que a sua preciosa (embora precária) economia funciona da mesma forma que o Coronavirus.
Caso acolhamos a sugestão do presidente, contrariando o Ministro da Saúde, de modo a retomar o funcionamento geral da economia, estamos fazendo uma aposta que, se por um lado é incerta, por outro é desumana. Isto, porque o Coronavírus tem um alto grau de contágio, razão pela qual atingiu todos os continentes habitados do planeta em menos de três meses. Portanto, uma volta maciça da circulação de pessoas, justificada por uma retomada da economia, implica necessariamente uma ampliação exponencial da capacidade de contaminação. Não há como conter a pandemia sem uma contração proporcional na economia.
Que fique claro, não há cura em vista e na melhor das hipóteses uma vacina só chegaria em cerca de um ano e meio, mais ainda se considerarmos o tempo necessário para que chegue ao Brasil. Como trata-se de um fenômeno absolutamente inédito, em escopo e natureza, não há como prever o efeito que uma contaminação generalizada da população brasileira teria na economia. O melhor que temos são as experiências de outros países, dos quais destaco Itália e China. Ao passo que no primeiro o número de mortos segue crescendo e a economia fora obrigada a parar, no segundo o contágio foi contido graças a medidas excepcionais de contenção. Em seguida, o Governo foi capaz de, aos poucos, injetar capital de emergência para gradativamente retornar à normalidade.
Foi essa disposição em parar a economia para parar o vírus que permitiu que o país retomasse, na medida do possível, a atividade econômica – não, como inclusive sugeriu um dos filhos do presidente, porque o país encabeçava uma conspiração contra as outras grandes economias do mundo. Daí que, do ponto de vista econômico, tanto quanto epidemiológico, as coisas sejam inseparáveis.
Isso explica porque ignorar tudo e todos seria uma aposta incerta, mas também estúpida. Entretanto, uma retomada da atividade econômica nesse momento é também uma opção desumana. Em seu pronunciamento, o presidente encheu a boca para dizer que 90% das pessoas não serão afetadas. É uma meia verdade. Pelos cálculos mundiais, a taxa de mortalidade do coronavirus é de cerca de 3% e, nos casos em que não há acesso a tratamento de urgência (UTI), em torno de 6% dos casos.
Levando em consideração o modo e o grau de contágio da doença, não é fora de realidade pensar que 70% da população contraia o vírus – mais uma vez, essa é a razão pela qual a quarentena é a única forma eficiente de combate até o momento. Num cenário como esse, em que 146 milhões de pessoas seriam infectadas, três por cento significaria um total de 4.3 milhões de mortes. Trata-se de um peso grande demais para qualquer consciência moral, mas alguns se esforçam em reafirmar a velha égide de que o remédio é pior do que a doença e que o impacto da quarentena causará a morte de muitos/as mais.
Mais uma vez, é um argumento raso: o que acontecerá com a economia na medida em que tenhamos milhares de mortes por dia? Com o sistema público e privado de saúde em absoluto colapso? Com trabalhadores e empregadores adoecendo, morrendo ou se recusando a trabalhar? Quem em sã consciência investiria capital estrangeiro no Brasil? Qual seria o preço econômico da imagem de um Estado que, por vaidade do presidente, deixa milhões à própria sorte? Como funcionariam as cadeias produtivas do Brasil?
Como disse e vou continuar dizendo, não se pode tratar a economia e a pandemia como se fossem problemas distintos: combatendo a doença ao passo que preservamos a economia. Não há como intervir em uma sem afetar a outra. A diferença, que infelizmente muitas pessoas não parecem entender, é que o Estado é capaz de restaurar a economia via políticas públicas. Como, aliás, em maior ou menor escala, faz desde o século passado, seja pelo viés monetarista ou keynesiano. Entretanto, não há como restaurar as vidas de quem não resistir a maior crise de saúde pública da nossa geração.