Digamos que você já saiba o básico sobre gerenciamento de risco, conforme discutido em meu artigo anterior: você já sabe da importância de delimitar stops de ganho e de perda, sabe do que os stops te protegem e do que eles não te protegem, sabe o que é risco operacional, o que é risco de liquidez e como você está exposto a eles. Porém isso não é tudo o que você precisa saber para realizar um bom gerenciamento de risco.
Algo fundamental para gerenciar o risco das suas operações é definir o tamanho da sua posição, ou como gostam de dizer os traders em bom financês, definir o sizing, o tamanho da sua mão. Como você já sabe, é fundamental que apenas uma parcela muito pequena dos seus investimentos seja dedicada a operações de alto risco, como o day trading. Dessa parcela, você também não deve arriscar tudo em um trade, alocando apenas uma pequena fração por operação. Feitas essas considerações, como podemos saber quanto de capital deve ser utilizado em cada trade?
Para responder a essa pergunta, precisamos retornar para a década de 50 na cidade de Nova Jersey, nas proximidades de Nova Iorque, Estados Unidos. Foi lá, a algumas dezenas de quiilômetros de distância de Wall Street, que o físico John Kelly e o matemático Claude Shannon desenvolveram uma das mais robustas e famosas metodologias de gestão de risco no mundo. O método levaria o nome do físico, ficando conhecido como o critério de Kelly, sendo uma das muitas técnicas de alocação que podem ser utilizadas para gerenciar o capital de maneira eficiente, com o intuito de maximizar o resultado obtido no longo prazo.
Como seria de se esperar de dois cientistas, Shannon e Kelly não tinham grande interesse no mercado de ações, mas tinham o interesse de se tornarem ricos o mais rápido possível. Para isso, nada mais natural do que o mercado de apostas, que é legalizado e regulado nos Estados Unidos. O que mais fascinava a dupla nos jogos de azar era justamente o sizing de uma aposta, já que mesmo em um jogo com as chances a seu favor, é possível perder dinheiro. Existem paralelos fascinantes entre estratégias de jogos de apostas e de trading, e a definição do sizing é talvez o maior deles. Assim como um jogador de poker não tem controle sobre as cartas que estarão nas suas mãos e nas de seus adversários, o trader não tem controle sobre os preços do mercado. Assim, uma das principais decisões que um trader pode ter, e que terão impacto direto nos seus resultados, é definir o sizing, ou seja, o volume financeiro ou o número de contratos ou ações que irá negociar a cada novo trade ou a cada novo dia. É muito comum que os traders definam uma quantidade fixa de contratos para uma determinada estratégia ou setup, mas é possível fazer melhor. O critério Kelly é uma fórmula matemática que ajuda traders e jogadores a calcularem qual o percentual do capital disponível que deve ser alocado em cada trading ou aposta.
Imaginemos por exemplo que você tem cem reais para apostar em um jogo de cara e coroa com uma moeda não viciada, com o vencedor pagando um real para o perdedor de cada rodada. Sabemos que nas primeiras rodadas podem haver distorções, com mais caras do que coroas ou vice-versa, porém no longo prazo a tendência é de que o resultado fique equilibrado em 50% para cada jogador, não fazendo muito sentido apostar em um jogo como esse.
Se no entanto você ganhar dois reais a cada aposta que acertar e tiver de pagar apenas um real caso perca, não há dúvidas de que é um jogo interessante para ser jogado, mas resta ainda resposta para uma grande questão: quanto colocar em cada aposta? Mesmo com as chances a seu favor, não é difícil imaginar cenários em que seria possível perder dinheiro: caso apostasse tudo nas primeiras rodadas e os resultados não fossem a seu favor, você estaria eliminado do jogo. Como então estabelecer qual montante deve ser colocado em risco em cada operação?
Kelly chegou à conclusão de que o valor ótimo para ser utilizado em uma aposta depende de duas variáveis básicas, que são utilizadas para definir a fórmula de Kelly. A primeira é a probabilidade de sucesso do trade W, ou seja, a probabilidade do trade ser vencedor, retornando um valor financeiro positivo. A segunda é definida pela razão R = ganho médio / perda média. Essa razão é igual ao ganho médio por trade vencedor dividido pela perda média por trade perdedor.
Assim, podemos definir a fórmula de Kelly como:
K% = W - (1 - W) / R.
Vejamos um exemplo: se o seu setup possui uma taxa de acerto de 80% e o seu ganho médio por trade vencedor é metade da sua perda média por trade perdedor, temos que W = 0.8 e R = 0.5. Assim, a fórmula de Kelly indica que K = 0.8 - (1 - 0.8) / 0.5 = 0.4, ou seja, você deveria nestas condições alocar 40% do seu capital disponível em cada trade de acordo com o critério de Kelly.
Uma das maneiras de você calcular o valor de W é pegar pelo menos os últimos 50 trades realizados e dividir o número de trades vencedores pelo número de trades totais. Quanto maior esse conjunto de trades mais confiável se torna essa estimativa da taxa de acerto. Caso tenha uma estratégia automatizada sendo executada por um robô em uma plataforma de automatização de trading, como a SmarttBot, ou em plataformas manuais que possuam o recurso de replay do mercado, você pode ainda executar um backtest por um longo período para calcular o valor de W. De maneira similar, o valor de R pode ser calculado utilizando-se os mesmos trades utilizados para o cálculo de W, dividindo o lucro médio dos trades vencedores pelo prejuízo médio dos trades perdedores.
Uma simplificação da fórmula surge em cenários em que o valor de R é igual a 1, como em setups que utilizam, por exemplo, o mesmo valor para os stops de ganho e de perda em cada trade, sendo estes os únicos critérios de saída. Nesse caso particular, a fórmula pode ser definida como K% = W - (1 - W) = 2W - 1. Assim, caso tenha um setup com uma taxa de acerto de por exemplo, 65%, com os mesmos stops de ganho e perda, o critério de Kelly estabelece que você deve alocar 2 x 0,65 - 1 = 0,30 = 30% do seu capital em cada trade.
A eficácia da fórmula de Kelly é tamanha que levou o jornalista William Poundstone a chamá-la de “a fórmula da fortuna”, no livro que escreveu sobre a descoberta e aplicação do princípio de Kelly, chamado de Fortune’s Formula, ainda sem tradução para o português. Sendo assim, bastaria aplicar consistentemente o critério de Kelly e aguardar a riqueza vir até você, correto?
Infelizmente na vida as coisas não são tão simples quanto gostaríamos. O critério de Kelly te fornece um valor ótimo a ser investido para um cenário hipotético, mas há uma série de poréns a serem analisados. Em primeiro lugar, a probabilidade de acerto é na melhor das hipóteses um norte bem embasado, na pior, é inútil: por mais que possamos analisar dados passados do mercado para tentar descobrir como ele deve se comportar no futuro, a realidade sempre pode ser diferente do previsto e estratégias que antes mostravam 70% de acerto podem cair para 60% de assertividade. Além disso, mesmo o prêmio pode cair, principalmente se estivermos utilizando saídas a mercado, em que o preço da ordem de saída é ditado pelo livro de ordens daquele momento, havendo impacto do que chamamos de slippage, a diferença entre o preço teórico e o preço médio de execução de uma ordem.
Porém esses não são o que considero o pior dos problemas do critério de Kelly. O principal problema do critério é que ele estabelece um valor ótimo a ser investido. No entanto, o ótimo não necessariamente será o mais saudável. Investir 100% de acordo com o critério de Kelly pode significar passar por quedas no seu patrimônio maiores do que você está disposto a suportar. Você pode achar que ciente da estatística, você suportaria um drawdown de 99,9%, mas a verdade é que no momento em que você vê seu patrimônio sendo dilapidado em proporções tão grandes, você vai entrar em pânico. Você não aguenta um drawdown de 99,9%. Ninguém aguenta um drawdown de 99,9%.
Sendo assim, como utilizar o critério de Kelly com sucesso? Uma das opções é investindo de maneira sub-ótima. Se for errar, você quer errar para baixo. Você não quer correr o risco de errar para cima e terminar quebrando. Por isso, uma forma comum de gerenciar o risco através deste método é reduzir um pouco o valor encontrado, possivelmente para algo em torno de 50% da alocação fornecida pela fórmula, no que é conhecido no mercado como half-Kelly. Você pode até não ter o melhor retorno possível, mas certamente terá uma curva de capital mais suave, que é o que mais importa para muitos investidores.