Por mais que nos choque a irracionalidade do ataque à estátua do Borba Gato, há que ser compreensível com a irritação dos perpetradores da agressão. A tolerância brasileira face às injustiças sociais sustentadas no país por séculos explica (ainda que não justifique) a explosão de indignação perante símbolos desta opressão. Assim, o estereótipo do bandeirante como um aventureiro em busca da riqueza fácil, propiciada pela descoberta de minerais preciosos, está incrustada no imaginário popular, associada ao seu papel na escravização dos selvícolas, valendo-se da ingenuidade dos nativos. Ao tentar destruir a estátua de um bandeirante notável, o movimento quer sublinhar a mensagem de que não serão reverenciados praticantes de perseguições de vulneráveis no passado, no presente ou no futuro.
Objetivamente, é importante voltar aos albores da atuação dos bandeirantes, a fim de passar um julgamento equilibrado do que eles representaram na nossa História.
Para tanto, vamos lembrar que São Paulo originou-se em São Vicente, povoado fundado poucos anos após o Descobrimento por Martim Afonso de Souza. O intuito era de viabilizar a produção de açúcar, commodity desejada, à época, como o petróleo é hoje. Da Baixada Santista, os jesuítas subiram a Serra do Mar, fundaram São Paulo e catequizavam índios, atraindo-os para a civilização cristã. A Região teria um modelo econômico promissor, com clima temperado, capaz de atrair imigrantes europeus uma vez confirmada sua viabilidade econômica.
Entretanto, a cultura da cana de açúcar no Nordeste mostrou-se muito mais eficiente do que no Sul. Além da maior insolação, a distância da Europa era substancialmente menor, numa época em que o custo de transporte era dominante. A cana de açúcar nordestina vai inviabilizar a paulista, assim como, anos depois, a do Caribe iria aleijar a nordestina.
O instinto de sobrevivência econômica dos paulistas, através das bandeiras, direciona-os, então, para a busca de minerais preciosos. É desta forma que Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso são colonizados e o ouro é descoberto. Melhor: o Tratado de Tordesilhas – que limitava a área do Brasil a uma fração reduzida do nosso atual território – foi ignorado pelos bandeirantes. Pode-se dizer que o Brasil deve a eles a concretização do ciclo do ouro, que definitivamente colocou o Brasil como um polo econômico importante, complementar ao mundo europeu. E que só chegamos ao tamanho que hoje temos graças à atuação destes desbravadores.
Tem mais: nada do que aconteceu nos primeiros 350 anos da nossa história teve São Paulo como polo de desenvolvimento. O deslocamento das fronteiras e a dinamização do comércio entre estes polos era o que restava aos paulistas que se recusavam a cair na agricultura de subsistência. Neste esforço, estes empreendedores garantiram a integração entre o Sul e resto do País, levando animais criados pelos gaúchos aos centros ativos espalhados pelo Centro e Nordeste e fomentando o comercio inter-regional. Somente com o advento do ciclo do café e a colonização italiana, São Paulo passa a ser o centro econômico do País, habilitando-se para o processo de industrialização.
Obviamente, etiquetar o bandeirante com a pecha exclusiva de subjugador de índios é uma injustiça tão grande quanto colocá-lo no altar dos heróis nacionais, a quem devemos gratidão eterna pelos papeis de desbravador e integrador da nação. Como sempre, a realidade é multifacetada, difícil de se ajustar ao figurino maniqueísta do mocinho x bandido.
Vamos transmitir às futuras gerações a informação sobre a ousadia, a resiliência e o papel único que o bandeirante desempenhou na constituição do território nacional, costurando a união econômica entre polos tão dispares e distantes; ele foi o primeiro empreendedor privado nacional. Mas, em paralelo, explanar a degradação moral que a escravização de seres humanos insere nas relações sociais. A caça de indígenas para entregá-los ao trabalho forçado é nódoa que perpassa nossa história, precursora do tráfego da africanos, o episódio mais repulsivo do nosso passado.
Destruir estátuas não redime os mal feitos do passado; resgatar e divulgar os erros e acertos da ação humana é o caminho racional para exorcizarmos as monstruosidades, mas sem deixar de reconhecer os feitos positivos.