Introdução:
Na véspera do Merge, não podemos deixar de levantar algumas questões importantes que têm sido colocadas pela comunidade com relação à eventuais riscos de centralização com a atualização. Na verdade, importante esclarecer primeiramente que o aspecto “descentralização” é uma pauta bastante complexa e multifacetária, apesar da simplicidade com que o tema é tratado muitas vezes. Assim, existem diversos pontos de vistas pelos quais é possível analisar esse tópico. Por vezes, um aspecto específico do protocolo é centralizado, enquanto outro não é. Em suma, existem mil tons de cinza entre o preto e o branco, e é isso que vamos discutir.
1) Risco quanto à concentração de validadores realmente existe?
A narrativa de que a migração da Ethereum para Proof-of-Stake iria tornar a rede mais centralizada começou a ganhar força conforme a proximidade com a atualização foi chegando. Alega-se, entre outros pontos, problemas relacionados à concentração dos validadores em players como Coinbase (NASDAQ:COIN) (BVMF:C2OI34), Lido, Kraken e Binance. De fato, os depósitos de ETH na Beacon Chain se afunilam principalmente nesses 4 entes que, juntos, somam hoje 59,6% do total - percentual próximo aos 67% necessários para controlar a rede. Mas será que isso é realmente um problema?
Primeiramente, para quem não sabe, cada node validador na rede Ethereum precisará obrigatoriamente de 32 Ethers (ETH). Assim, algum investidor institucional que tenha hipoteticamente 2 milhões de ETH, precisaria montar diversos nodes e distribuir 32 ETH em cada, operando mais de um validador e fazendo com que cada um desses nodes dispute em “igualdade” com outros nodes que também tem 32 ETH.
Lido, Coinbase, Kraken, Binance e companhia não são os validadores em si. Pegando como exemplo para fins didáticos a Lido, que tem o maior percentual (30.2%), é importante esclarecer que ela atua como um “pool de staking”, democratizando esse acesso para aqueles investidores que não possuem os tais 32 ETH. Dessa forma, essa pessoa consegue pegar a quantia menor que detém e contribuir para um pool de validação, participando do processo.
A Lido não opera diretamente esses Ethers na segurança econômica da rede e não consegue usá-los para atuar diretamente no processo de construção de blocos. Ela basicamente atua redirecionando esses ETH concentrados dos usuários entre validadores terceirizados, distribuindo-os. Assim, não faz muito sentido nos preocuparmos com a possibilidade de esses protocolos atuarem maliciosamente fraudando um bloco.
No entanto, para se tornar um operador de node terceirizado da Lido, é necessário passar por um processo de votação pela sua governança. E 94% - aproximadamente - do token de governança da Lido, o LDO, é detido por 1% dos maiores endereços, que são empresas de venture capital reguladas por órgãos competentes e submissos às sanções da OFAC, Agência de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA. Como veremos mais à frente, essa não parece, a meu ver, tratar-se de uma possibilidade que seria evitada com o Proof-of-Work.
O que devemos ficar atentos de fato é com um risco de mercado, com a possibilidade de se criar um monopólio de staking, o que possibilitaria a Lido (por exemplo) alterar regras de yield de maneira conveniente a ela. E é por isso que é importante ter outros players na disputa, como Coinbase e Binance, por exemplo.
2) E o risco regulatório sobre o Proof-of-Stake?
Outra narrativa que ganhou força foi a de que a alteração do mecanismo de consenso para Proof-of-Stake deixaria a Ethereum mais suscetível a riscos regulatórios. Isso porque, diferentemente da mineração que exige hardwares específicos e potentes como ASICs, o Proof-of-Stake possibilita que os validadores consigam rodar seus nodes em máquinas virtuais, sem necessidade desses equipamentos.
E, naturalmente, essas máquinas virtuais precisam ser hospedadas em algum player de computação em nuvem, provavelmente mais centralizados, como um Google Cloud da vida, que poderia ser facilmente regulado ou ter sua atividade limitada por questões políticas. E aí caímos no mesmo aspecto de uma eventual regulação dos “venture capitalists” que operam nodes na Lido e concluímos novamente sobre a importância de haver outros players no mercado.
Essa é uma preocupação super válida e plausível, mas não parece tão diferente assim das regulações que já vimos também a mineração sofrer em outros momentos. Vale lembrar que quando a China baniu mineradores de bitcoin em maio de 2021, vimos o hashrate da rede cair mais de 54% rapidamente. Naturalmente, esses mineradores se realocaram geograficamente e, hoje, a rede opera com o maior hashrate da história, como vemos abaixo:
Na verdade, inclusive, foi muito mais difícil e custoso para esses mineradores transportarem suas máquinas e se reposicionarem de país do que seria para um validador trocar de um servidor de computação em nuvem censurado para outro não-censurado.
Debates finais: As discussões sobre descentralização são complexas. Inúmeros outros fatores podem não só sustentar que a mudança de consenso não irá centralizar a rede mas, pelo contrário, irá descentralizar. Isso porque, no Proof-of-Work, quanto mais o tamanho da blockchain aumenta, mais os nodes precisam investir em hardwares potentes e caros, afetando a descentralização.
Nesse sentido, o Proof-of-Stake abre margem pra implementação do mecanismo de Sharding, possibilitando uma solução para o problema supracitado a partir da menor necessidade de hardwares pare rodar um nó, o que faz com que, pelo menos em tese, seja possível operar um node com um notebook comum ou até um smartphone.
Há ainda a tese de que, em Proof-of-Work, um ataque de 51% demandaria um poder computacional extremamente alto e impraticável, enquanto em Proof-of-Stake bastaria “apenas” que o agente malicioso comprasse a quantidade suficiente de ETH para ter mais de 51% do staking. No entanto, além da quantia surreal de dinheiro despendido, esse agente ainda teria o risco de falhar em função dos mecanismos de slashing.
O fato é que o Merge acontecerá amanhã, e daremos tempo ao tempo para ver os contornos que as modificações irão tomar.