O Brasil tradicionalmente apostou na cana-de-açúcar como matéria-prima principal para o processamento de etanol, mas o interesse crescente de antigos e novos investidores deve elevar a participação de mercado do biocombustível fabricado a partir do milho.
Anúncios de novas usinas de etanol estão surgindo por todo o território nacional. As usinas em si não são novidade, dada a rica história do país na produção de biocombustíveis – especialmente etanol a partir da cana. O que chama a atenção é que a matéria-prima que essas fábricas processarão é o milho.
"O etanol de cana está menos competitivo do que o de milho, então faz sentido para a gente ter atenção e migrar para um produto de maior margem", disse o diretor financeiro da São Martinho (BVMF:SMTO3), Felipe Vicchiato, durante uma teleconferência com investidores em novembro.
A fala ecoa um consenso entre participantes de que o etanol de milho está a passos largos de abocanhar porções cada vez maiores do mercado doméstico do biocombustível, via projetos greenfield e brownfield.
Em junho de 2019, a São Martinho anunciou um investimento de R$350 milhões em uma unidade de processamento de milho em sua usina de etanol de cana em Boa Vista, em Goiás. A empresa se juntou a outras veteranas da cana, como Cerradinho e Pindorama, que abraçaram o milho para alavancar suas operações, em linha com o sucesso rápido da pioneira FS e da chegada do grupo paraguaio Inpasa ao Brasil.
A usina recém-construída em Boa Vista estreou bem a tempo do início da temporada 2023-24, desempenhando um papel relevante em complementar a oferta de etanol da São Martinho, mas também criando espaço para que a empresa direcione mais cana para a produção de açúcar.
Sustentando essa estratégia está uma visão otimista de oferta-demanda para o etanol de milho e seus subprodutos, particularmente para os grãos secos de destilaria (DDG, na sigla em inglês).
Essa narrativa, dizem especialistas do setor, ganha corpo considerando as receitas de DDG com os preços de eletricidade em baixa, que encurtam margens para as sucroalcooleiras capazes de gerar excedentes que podem ser vendidos de volta à rede elétrica.
Isso não quer dizer que grandes companhias como a São Martinho não tenham projetos envolvendo cana no radar. Mas nenhum deles envolve elevar a capacidade instalada de etanol de cana de primeira geração. No radar, estão projetos envolvendo o biocombustível de milho ou unidades exclusivas para o processamento de açúcar.
Prós e contras
Uma pesquisa realizada pela Argus constatou que 15 novas plantas de etanol a partir de outras matérias-primas que não a cana-de-açúcar foram reveladas ao longo de 2023 e mais podem estar no caminho. Naturalmente, alguns projetos são mais ambiciosos que outros.
A Inpasa investirá até R$2,5 bilhões na construção de uma nova usina de milho no Maranhão, expandindo sua presença no mercado nordestino, tradicionalmente dominado pela indústria sucroalcooleira local e os braços de trading das grandes varejistas, como a Raízen (BVMF:RAIZ4). Um investimento emblemático de R$556 milhões da Be8 no Rio Grande do Sul ainda não avançou, mas poderia ajudar a resolver o déficit estrutural do estado em etanol.
Um fator chave que levou essas empresas a avançarem na produção do biocombustível a partir de milho e outros cereais foi a disponibilidade ampla sob um custo baixo, com a "safrinha" possibilitando abastecimento para o ano inteiro.
Além disso, analistas de bancos de investimento afirmam que usinas de etanol – seja qual for a matéria-prima – são intensivas em capital, mas o prazo de retorno do investimento (ROI, na sigla em inglês) em projetos de milho é mais rápido que os de cana.
Mas garantir biomassa pode ser um desafio para expansão do etanol de milho. A maioria das usinas do biocombustível do país utiliza o bagaço – a biomassa do processo de moagem da cana-de-açúcar – para atender às necessidades energéticas de seus próprios processos de produção. Mas o milho não conta com essa habilidade de gerar energia: as usinas brasileiras de etanol do grão dependem da queima de eucalipto ou de outros tipos de biomassa para alimentar suas operações.
Novas dinâmicas
Alguns acreditam que o avanço do etanol de milho pode inclusive mudar a dinâmica de trading durante a entressafra. Isso porque usineiros mais capitalizados costumam adotar uma estratégia de "carry", que envolve a formação de estoques para se beneficiar de preços mais atraentes quando seus concorrentes encerraram a moagem de cana, ou seja, quando há menos produto disponível no mercado.
A cana-de-açúcar tem um período de cultivo limitado e não pode ser armazenada, pois começa a fermentar assim que cortada, enquanto as plantas de milho podem produzir o ano todo.
Ricardo Mussa, presidente-executivo da Raízen, descarta qualquer impacto imediato. "Os números do etanol de milho são muito lineares. É bastante previsível", disse ele à Argus durante uma coletiva de imprensa em novembro. "Os volumes não são suficientes para mudar a equação da entressafra no curto prazo."
Olhando à frente, o setor de etanol de milho espera produzir 10 milhões de m³ até a safra 2030-31, abarcando mais de 20pc do mercado brasileiro de combustíveis, segundo dados da União Nacional de Etanol de Milho (Unem). Para a temporada 2023-24, o processamento deve alcançar 6 milhões de m³, alta de 37pc em relação à temporada anterior.
No ano passado, a produção brasileira de etanol foi estimada pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica) em 31,1 milhões de m³, sendo 4,43 milhões de m³ partindo do milho, correspondendo a 14pc do total.