Frente a uma grave crise econômica em 2007, o governo do Equador decidiu abandonar sua moeda nacional, o peso equatoriano, para ter como numerário o dólar. A decisão não é difícil de explicar: quando há baixa confiabilidade na própria moeda -- ela deixa de ser escassa e útil para reservar valor -- pessoas recorrem a outra ferramenta que facilite trocas. Normalmente governos tentam planos de estabilização e, por vezes, trocam de moeda nacional. Contudo, quando o governo é fraco, há chances de uma moeda estrangeira ser mais desejada por sua população e, a depender da disponibilidade, dominar sua economia para o bem e para o mal.
Em 2017, dez anos após a de sua economia, os políticos equatorianos não pretendiam voltar a ter uma moeda própria. A dolarização foi um sucesso. De acordo com a escola austríaca de economia, podemos afirmar que a razão foi o fato de o dólar ser hard money se comparado às possibilidades do Equador. O que isso significa? Hard money é o nome que se dá à moeda mais crível em termos de controle de emissão, sendo uma melhor reserva de valor. Se ela puder ser facilmente usada como meio de pagamento e numerário, tende a ser a moeda preferida por uma população a menos que haja intervenções estatais. Por exemplo, se eu não precisasse pagar impostos em real e já estivéssemos num equilíbrio onde todos usamos essa moeda, jamais reservaria valor na moeda de um país em claro descontrole fiscal como o Brasil; esse raciocínio motiva muitos economistas que incentivam investimentos em dólar.
Em geral, a dolarização ocorre em países pequenos com alta disponibilidade de moeda estrangeira -- sendo o Panamá um exemplo de economia há muito dolarizada -- ou em países com crise monetária, independentemente do tamanho. No Brasil da hiperinflação, havia serviços pagos com dólar e muitos da minha geração nasceram com partos pagos em moeda americana. Mesmo os Estados Unidos já emitiram títulos de dívida lastreados em francos suíços durante a incerteza e inflação causadas por políticas equivocadas cujo resultado foi a estagflação do governo Jimmy Carter.
Atualmente os assuntos monetários têm novamente tomado dimensão relevante e discussões sobre exposição à moeda estrangeira voltam. No Brasil, discutem as consequências de liberar contas em dólar no país; nos EUA, os cortes de impostos sob déficit fiscal e guerra tarifária com a China levam a preocupações sobre inflação. Se a hipótese de maior contágio pela exposição ao dólar for real, há possíveis más notícias porque o dólar talvez esteja perdendo novamente sua resistência.
No entanto, alguns economistas austríacos defendem que atualmente há uma alternativa ao dinheiro estatal como hard money. Mais acessível que investimentos em ouro, o Bitcoin é escasso, seguro e, em tese, não afetado por governos. Isso vale para algumas das demais criptomoedas, mas acredito que é possível afirmar que o Bitcoin está mais bem colocado nessa disputa. Dessa maneira, a necessidade por dolarização de alguns países pode ser, talvez, uma oportunidade para as criptomoedas se provarem úteis como padrão monetário. A questão que fica é se elas são realmente úteis como moedas, de fato.
Atualmente, vejo dois desafios para isso. O primeiro é a não escalabilidade para a quantidade de transações que desempenhamos cotidianamente. Há testes promissores com Lightning Network, porém mesmo a Segwit, premissa para a nova tecnologia, ainda não foi amplamente adotada. Não vejo uma população usando uma moeda que não desempenhe o papel de ser um meio de pagamento. Por mais que Roger Ver seja incrivelmente chato discutindo taxas de transação e tempo de confirmação, ele tem um ponto: o Bitcoin ainda não escala. O fato de que pontos que deveriam ser consensuais como a Segwit não serem adotados apenas agrava o problema.
O segundo é a privacidade. Apesar de menos relevante para a adoção em massa, a privacidade influencia como seria um mundo com uma criptomoeda adotada. Uma das coisas mais sensíveis que podemos saber sobre alguém é como ela gasta seu dinheiro. Em particular, um governo dotado de um exército tem interesses em saber isso muito também para manter seu controle sobre uma população e para coletar impostos. Se você “bitcoiniza” uma economia, não apenas o governo saberá exatamente o quanto cada um tem, porém como cada um gasta de maneira muito fácil. Esses dados, uma vez vazados, expõem a vida de um indivíduo a todos os seus pares se a economia for suficientemente adaptada para criptomoedas. Sem resolver a questão da privacidade fica impossível acreditar que a criptomoeda gerará um ambiente socialmente desejável e muitos entrantes poderão ficar receosos com esse problema.
Portanto, não acredito que estamos tão perto da adoção de uma criptomoeda como objeto de escolha para um país se dolarizando. Podem ser usadas brevemente para fuga de capitais ou ocultação de dinheiro (como já foram anteriormente na Índia), mas para transacionar diariamente como os equatorianos fazem com o dólar não me parece um cenário crível. O chamado “Padrão Bitcoin”, advogado pelos austríacos, é uma possibilidade teórica, mas esbarra nas atuais possibilidades tecnológicas. Por conseguinte, é fundamental acompanhar as tecnologias. Schnorr signatures são um passo na direção de resolver isso e devem ser observadas com atenção. Sidechains também são boas alternativas. O que não falta são chances para em pouco tempo o Bitcoin ser, de fato, hard money.