Pode uma árvore pegar fogo sem que o incêndio se alastre por toda a floresta?
Foi assim que Rodolfo Amstalden terminou sua palestra ontem. Não por coincidência, proponho, nas palavras abaixo, um raciocínio um tanto quanto correlato.
Era o ano de 1871 em Chicago. Pela sua localização estratégica, havia se tornado o principal entreposto comercial de madeira do mundo. A cidade estava em pleno crescimento, atraindo imigrantes de muitas regiões, em especial, da Alemanha. Dadas as características térmicas e abundância da madeira, as construções da época eram erguidas quase que em sua totalidade usando esse material.
O verão daquele ano, porém, foi especialmente seco e quente. Em uma noite de domingo, dia 8 de outubro, um incêndio se iniciou no celeiro da família O’Leary. Ninguém sabe ao certo sua origem, mas reza a lenda que, ao ser ordenhada, uma vaca derrubou uma lamparina acesa desencadeando o trágico incidente.
A partir daí, uma série de combinações catastróficas levou a uma tragédia sem precedentes na cidade. O clima seco, o vento de outono, as construções feitas de madeira e os recursos escassos dos bombeiros naquele momento fizeram as chamas se espalharem rapidamente.
Cerca de um terço das casas da cidade foram destruídas, um prejuízo econômico gigantesco e, o mais lamentável, centenas de pessoas morreram.
O fogo só foi controlado no dia 10 de outubro, quando uma chuva providencial caiu sobre a cidade.
Começaram, então, os trabalhos de restauração, que mobilizaram todo o país.
Naturalmente, o processo de reconstrução não seguiu um caminho óbvio, tampouco linear.
Foram feitas algumas tentativas de reconstrução usando a mesma commodity e, em 1874, três anos depois, um novo incêndio ocorreu. Ainda que em menores proporções, as consequências econômicas e sociais foram ainda devastadoras.
A partir daí, de fato, teve início uma mudança estrutural na indústria. As casas de madeira deram lugar a enormes arranha-céus feitos de ferro, tijolos e terracota – uma espécie de argila mais resistente ao fogo. Os conceitos arquitetônicos e urbanísticos aprendidos com a tragédia deram origem à escola de arquitetura de Chicago, que exerceu grande influência no planejamento de outras cidades pelo mundo. Isto é, a transformação da cidade também gerou impactos muito além das proporções imaginadas inicialmente.
Incêndios também são comuns nos mercados.
Na história recente, é possível destacar, por exemplo, a grande crise financeira de 2008, iniciada por um “descuido” no mercado imobiliário americano.
Há cerca de dois anos, outra “lamparina” foi derrubada na China e a crise do coronavírus se alastrou rapidamente.
Em resposta, os bancos centrais e os governos juntaram esforços para “reconstruir” as suas respectivas economias usando os mesmos instrumentos monetários e fiscais utilizados diversas vezes no passado: impressão de dinheiro, aumento da base monetária e do endividamento público, e por aí vai.
Não por coincidência, estamos sentindo as consequências do superaquecimento do mercado de trabalho e dos índices de inflação. O clima seco impactando as commodities agrícolas, os ventos de uma recessão americana ainda neste outono do hemisfério norte, as casas europeias altamente dependentes do petróleo russo e as ferramentas mais escassas das autoridades monetárias têm feito “as chamas” se espalharem rapidamente nos mercados.
Temos hoje “focos de incêndio” por toda parte e, nos portfólios dos investidores, não é diferente. Imagino que você possa estar decepcionado(a) com a performance dos últimos meses de alguns grandes gestores. É natural também que tenhamos os mais diversos questionamentos, principalmente se nos deixarmos levar por nossos vieses. O que a história nos conta, porém, é que esses momentos difíceis são, sobretudo, oportunidades de reflexão, aprendizado e reconstrução.
Quando se derrubam as velhas casas de madeira, é a hora de arregaçar as mangas, construir algo muito melhor e fazer escola.
Um abraço