No texto da semana passada, abordei a questão do misticismo e da falta de objetividade no campo da análise técnica, principalmente no que diz respeito ao ensino oferecido ao público em geral: cursos, tutoriais, vídeo-aulas, enfim. Meu objetivo agora é dar início a uma série de artigos que exploram mais a fundo o que são e como efetivamente funcionam sistemas de análise técnica, ou como devem ser construídos para funcionarem.
A ideia aqui é que leitores/as possam discernir quem está fazendo promessas irreais de quem oferece uma educação calcada na realidade do mercado. Entretanto, a “realidade” do mercado tem conotação um pouco vaga, razão pela qual gostaria de começar explorando essa noção e suas implicações para a análise técnica. Isso nos permitirá entender melhor como funcionam, por que funcionam e o que podem produzir nossos sistemas de análise.
O primeiro ponto que precisa ficar muito claro sobre o comportamento do mercado é que ele é, por definição, imprevisível. Inclusive, é por isso mesmo que ele traz a possibilidade de ganhos mais expressivos: eles são uma compensação pelo risco da incerteza. Para facilitar a compreensão, basta pensar no oposto, que seriam os títulos de renda fixa: você recebe um retorno pequeno justamente porque o risco é muito baixo e há certeza de quanto, e quando, irá receber seu prêmio.
Se todas as pessoas soubessem como o mercado iria se comportar, num horizonte temporal qualquer, o retorno potencial seria proporcionalmente menor, justamente porque essa informação faz com que (quase) a totalidade dos/as agentes seja orientado por um mesmo princípio, conferindo um grau muito maior de estabilidade na relação entre oferta e demanda. É a incerteza e a variedade de maneiras pela qual cada agente se posiciona em relação a ela que torna possível as oscilações mais amplas – isto é, grandes transformações na relação histórica entre oferta/demanda.
Ao mesmo tempo, isso implica numa proporcionalidade do ganho em função do risco, justamente porque a demanda por altos retornos com baixo risco faz com que essas oportunidades sejam raríssimas. Esse risco, por sua vez, se traduz em linhas gerais na volatilidade do ativo (quão imprevisíveis são suas oscilações), a maturação da operação (quanto tempo ela tende a durar), a liquidez (velocidade com que se consegue converter o ativo em dinheiro e vice-versa) e finalmente, o retorno que se visa atingir.
Qualquer investimento, incluindo aqueles feitos utilizando um sistema de análise técnica, tem de levar esses pontos em consideração, para se adaptar melhor as condições e objetivos de cada investidor/a que aplica seu dinheiro naquele instrumento. Isto, reconhecendo a maneira como um fator afeta o outro: por exemplo, retornos maiores num mesmo prazo de tempo (maturação) implicam riscos maiores.
Logo, a criação de qualquer estratégia começa na definição dessa relação e no reconhecimento das limitações que impõe. Isso significa que, antes de qualquer coisa, começamos com um objetivo, que pode ser tanto o retorno quanto a consistência (baixa volatilidade de resultados), a liquidez ou maturação. Em seguida, estudamos como fracionar o risco entre os demais fatores.
Isso tudo vale para a concepção da estratégia ou sistema do ponto de vista de uma operação individual, que a título de ilustração pode ser a compra e venda de uma única ação, uma única vez. Entretanto, esse quase nunca é o caso, e precisamos levar em consideração mais três pontos que tocam o risco num nível operacional, isto é, da sua aplicação contínua ou, como gosto de dizer, dos fatores de risco serial (isto é, da série de aplicações da mesma estratégia). Tratam-se da repetição, frequência, diversificação e correlação, que explicarei a seguir.
A análise técnica, e as finanças no geral, são um campo largamente fundado sobre o estudo das probabilidades, que por sua vez é regida pela lei dos grandes números: as probabilidades tendem a se aproximar do valor esperado conforme sobe o número de repetições. Assim, uma moeda tem 50% de chance de dar cara ou coroa, mas isso não significa que se num primeiro arremesso ela der cara, com certeza no segundo ela dará coroa.
Contudo, se realizarmos uma série de 10 mil arremessos, essa proporção tende a se concretizar, independente da probabilidade relativamente alta de termos, por exemplo, cinco coroas seguidas. Isso significa, para nós, que o resultado de um sistema precisa ser considerado não em termos de operações individuais, mas em termos de uma série de repetições. Em outras palavras, o risco tende a se estabilizar no tempo e quanto maior o risco, encarado como conjunto de resultados possíveis, maior o número de repetições necessárias para tanto.
Isso é justamente uma das coisas que separa o jogo de azar do investimento financeiro. Embora, em ambos casos, tenhamos controle apenas sobre nossas ações e nenhum impacto sobre o resultado (salvo grandes agentes), no investimento a estabilidade dos resultados nos favorece, enquanto no jogo de azar ela favorece a banca. Ora, num jogo de dados, estou apostando numa combinação enquanto o cassino ganha em todas as demais combinações; mesmo que a distribuição aleatória possa me favorecer no curto prazo, se continuarmos jogando a vitória sempre será da casa.
A repetição comporta ainda um outro elemento de risco que é de ordem temporal, que diz respeito a frequência ou taxa de ocorrência. No exemplo do cassino, podemos simplesmente continuar rolando os dados. Entretanto, como um sistema de análise técnica visa identificar um certo tipo de fenômeno, não temos controle sobre quando eles irão aparecer. O que isso implica é que se, por exemplo, esse fenômeno é muito raro, a frequência da repetição será muito mais baixa ainda que o risco individual da operação seja menor.
Para ficar num exemplo simples, podemos tomar uma média móvel de curto prazo, digamos 20 dias. O preço irá interagir com essa média, no sentido de cruzá-la para cima ou para baixo, com uma frequência muito maior do que uma média de, digamos, 200 dias. Embora essa média mais longa seja mais confiável, se uma operação com base nela gera prejuízo, pode ser que o tempo até que uma nova oportunidade seja gerada demore muito e precisamos ajustar o tamanho de nossas posições de acordo com esse risco.
Nos voltando agora para a diversificação, esse fator diz respeito a quantos ativos diferentes essa estratégia ou sistema será aplicado, o que é uma forma de diluir o risco ao sacrificar o retorno potencial das operações individuais – quanto maior o número de instrumentos, menor o capital investido em cada uma e menor o retorno naquelas que gerarem lucro. Com isso em mente, sugiro ainda assim sempre diversificar. É também uma forma de acelerar a distribuição de resultados em sistemas de baixa frequência de repetição.
Isso pode ser feito tanto com ativos da mesma classe (como diferentes ações), quanto entre classes de ativos (ações, moedas e futuros, por exemplo). O grau de diversificação possível está estritamente relacionado ao funcionamento da estratégia, mas em praticamente todos os casos, especialmente caso você não tenha muita experiência em alocação de recursos e gestão de risco, sugiro explorar ao máximo as possibilidades de diversificação dentro de um mesmo sistema.
Por fim, tratemos então da correlação enquanto fator de risco na aplicação de um sistema de análise. Esse ponto diz respeito ao grau de paridade no movimento entre dois ativos distintos, ou seja, o quanto eles variam um em função do outro. Para ficarmos num exemplo simples, basta pensar no preço do pão, que sobe ou desce conforme o preço da farinha; ou as ações de uma mineradora que caem ou sobem conforme o preço do minério.
Como se pode notar, a correlação está estritamente ligada a questão da diversificação, visto que quanto maior a correlação entre os ativos que serão analisados, mais eles tendem a anular os efeitos positivos da diversificação. Por outro lado, um alto grau de correlação é útil quando analisamos um ativo em função de outro para obter uma confirmação extra: aplicamos nosso sistema no preço do pão e em seguida, no da farinha, para ver se ele reforça ou refuta nossa análise.
Todos esses pontos que discuti acima ajudam a traduzir o que é a realidade do mercado, que como podemos ver é bastante complexa. O que a análise técnica, assim como outras escolas de estudo dos mercados financeiros fazem, é estudar como tirar o máximo de proveito dessa realidade, otimizando o uso do capital disponível em função dos objetivos de cada investidor ou investidora.
Trata-se de uma noção bem distinta, portanto, do que é anunciado nas redes sociais por quem está interessado/a em vender cursos sobre o tema. Não se trata, na maior parte dos casos, de aprender uma forma de ganhar dinheiro no mercado e muito menos de ganhar muito em pouco tempo. Até porque, se as coisas fossem tão simples quanto comprar ou vender com base na proporção de Fibonacci, todo mundo faria isso e por isso mesmo ninguém obteria lucro, as margens seriam dilaceradas pela multidão de agentes tentando tirar proveito da mesma oportunidade.
Por que desenvolver um sistema?
Confesso que não pretendia que esse texto ficasse tão denso, mas creio que é melhor assim do que simplificar demais um tema que pode ter consequências desastrosas para a saúde financeira das pessoas. Em todo caso, com tudo isso em mente, por que alguém ainda pensaria em desenvolver um sistema de análise? Bom, as justificativas que me vêm à mente são poucas.
Em síntese, porque os instrumentos tradicionais disponíveis ao público em geral (fundos de investimento, etc.) não contemplam as demandas individuais de retorno, liquidez, maturação e/ou volatilidade de um/a investidor/a. Em outro nível, porque não contemplam uma demanda institucional ou coletiva, caso no qual adentra-se na seara da análise enquanto prestação de serviço ou empreendimento, seja pela venda de relatórios, desenvolvimento de robôs, atuação institucional ou algo nesse sentido - sempre observando as exigências da lei.
No geral, sugiro só pensar em um investir no desenvolvimento de um sistema se você pretende atuar profissionalmente no mercado, está buscando opções para diversificar um portfólio que já é robusto ou porque quer, pode e consegue encarar isso como um hobby. Com toda a sinceridade, se você não se encaixa em nenhuma dessas alternativas e, especialmente, se você está em busca de dinheiro fácil, esse é o caminho mais rápido para perdas que, em alguns casos, podem ser irrecuperáveis.
A criação de um sistema é um processo muito mais complexo do que a Internet faz parecer, e essa é a razão pela qual são tratados como segredo industrial, visto que perdem eficiência na medida em que se tornam públicos. Na mesma medida, essa é a razão pela qual o seu desenvolvimento está atrelado a uma motivação específica que, por um motivo qualquer, não é contemplada pelos instrumentos amplamente disponíveis: simplesmente não vale a pena gastar tempo e dinheiro reinventando a roda.
Além disso, a formação necessária para fazê-lo com algum grau de sucesso envolve uma mistura entre as faculdades da engenharia, economia e estatística, não tendo absolutamente nada a ver com o famigerado “tempo de tela”, que seria o equivalente a se considerar qualificado/a para treinar um time profissional graças as partidas de futebol que viu na TV. Sem a base necessária para entender o que está ao redor dos fenômenos de preço, oferta e demanda, não há como desenvolver um sistema confiável.
Só assim é possível identificar, objetivamente, um fenômeno, quantifica-lo, modelar e explicar seu funcionamento para então explorá-lo dentro de um conjunto complexo de fatores de risco. Se você ainda está lendo esse texto, considero que está pronto/a para seguir adiante. Então, na próxima semana discutirei como funciona um sistema de análise técnica integrada, contemplando de forma objetiva os quatro aspectos fundamentais do mercado: preço, volume, volatilidade e fundamentos macroeconômicos. Espero você lá!
Contato: afsalmeron@gmail.com