“Complacência”, entre outras coisas, claro, é o nome de um bom livro de economia brasileira, escrito por Fabio Giambiagi e Alexandre Schwartsman.
O Brasil parece destinado a ser, eternamente, o país do futuro porque evita enfrentar de frente seus problemas. Empurramos discussões difíceis para frente, como se esquecêssemos as necessidades de arbitrar conflitos. Como é difícil ser desagradável mediante as pressões de determinado grupo de interesses.
Curioso como essa disposição transbordou o território local e contaminou os mercados globais. O Day One da semana passada foi batizado “Blood Bath and Beyond”; servia como um alerta à complacência dos investidores diante dos riscos às vésperas do simpósio de Jackson Hole. Àquela altura, as cotações embutiam a visão predominante de que a atividade já desacelerava, a inflação tinha feito seu pico e o Fed não precisaria subir tanto sua taxa básica de juro.
Deu no que deu.
Lembrando aquele discurso de Ben Bernanke sobre o “taper tantrum” em Jackson Hole, Jerome Powell castigou os mercados com palavras contundentes sobre o combate à inflação, quase em seu momento “whatever it takes” (fazer o que for necessário, em alusão à expressão de Mario Draghi). As apostas de um novo aumento de 75 pontos-base no juro básico norte-americano na próxima reunião do Fed subiram a 70% e a ideia do “Fed pivot” (mudança em direção a uma queda de juro em 2023) ficou mais longe. As bolsas derreteram lá fora, num movimento que se estende na manhã desta segunda-feira.
Sempre que estamos diante da escolha entre um “fim terrível” e um “terror sem fim”, prefiro o primeiro. O choque e a volatilidade são sempre duros, mas revelam a verdade e permitem que enfrentemos os desafios de frente. O primeiro passo para a resolução de um problema é reconhecê-lo na íntegra. A alternativa implica empurrar para baixo do tapete, apenas escondendo a poeira em vez de eliminá-la de fato. Não lidar com um problema não significa que o problema deixa de existir.
Como miséria pouca é bobagem, na falta de uma escolha entre "fim terrível” e “terror sem fim”, estamos diante de duas.
A primeira é justamente o Fed. Reconhecer que a saída da atual crise inflacionária passa, necessariamente, por algum sacrifício parece superior a atrasar o inexorável aperto monetário. Estamos diante de um ciclo econômico clássico. Para combater a inflação, teremos de esfriar o mercado de trabalho, gerar desemprego e conter a demanda agregada. Isso vai conter os preços e permitir redução de juros lá na frente. Não há saída fácil. A alternativa é pior. A inflação persistiria, entraríamos na espiral preços e salários de forma mais contundente e o esforço no futuro seria ainda maior. Quanto antes o mercado encarar essa realidade, melhor. Tergiversar sobre as dificuldades ou as próprias mazelas será sempre um caminho tentador a curto prazo, mas não resolverá os problemas.
A segunda vem da eleição brasileira. O cenário de polarização excessiva com dois personagens personalistas em cada polo não oferece solução ótima. Ambas as lideranças estão aquém dos desafios que se colocam diante de nós. Nada do que é essencial para o crescimento da produtividade brasileira (isso é o que deveríamos estar perseguindo!) está sequer no debate — na Band ou seja lá onde.
A boa notícia aqui é que também o “fim terrível” se aproxima, superando a procrastinação eterna do “terror sem fim”. Por meses, talvez até anos, tememos essa eleição. Os prêmios de risco associados aos ativos brasileiros foram às alturas, flertando com máximas históricas. A eleição vai passar e vamos perceber que continuaremos sendo o mesmo país de sempre, em seus 200 anos de independência, complacência e mediocridade.
Seja lá qual for o resultado do pleito, convergiremos à nossa média de sempre, superior à atual, sem falsas esperanças ou expectativas ingênuas.
Curiosa e circunstancialmente, talvez possamos ser mais do que apenas o país do futuro, porque a superação de certas adversidades, ao menos em termos relativos, não depende tanto da gente; ela vem de fora, alimentada por fatores exógenos, sem que tenhamos de enfrentar conversas difíceis ou arbitrar conflitos.
Encontramos um vento favorável das commodities em níveis elevados, melhorando nossos termos de troca. O mundo ocidental volta a valorizar democracias representativas diante da insurgência de autocracias beligerantes. Uma das facetas da complacência é a tendência a evitar conflitos e valorizar uma postura pacifista, num momento de remilitarização do mundo, o que pode ser enaltecido agora. A subida dos juros em âmbito global prioriza casos de value sobre growth (o Brasil, com seus bancos, suas commodities e seu mercado doméstico forte é um caso de value; com pouca tecnologia embarcada, sofremos menos do que a Nasdaq, por exemplo).
Reiteramos nossa visão construtiva para os ativos de risco brasileiros, que pode ser hedgeada (protegida) com uma posição vendida em bolsa norte-americana. Por incrível que pareça, a complacência está maior por lá.