Está na moda acreditar que o bitcoin não possui valor intrínseco, ou que os governos irão esmagá-lo até destruí-lo. Presidentes de bancos, como o próprio chefe do Banco Central do Brasil, estão falando isso recorrentemente na mídia. Por outro lado, é verdade também que os aficionados da tecnologia Bitcoin acreditam que a moeda digital irá acabar com os bancos, com os governos e até mesmo com as grandes empresas.
Nenhum desses dois pensamentos extremos é verdade. A realidade é muito mais complexa que essas duas visões antagônicas. E é sobre isso que gostaria discutir com vocês neste artigo.
O mercado global de criptomoedas está evidentemente superaquecido e irracionalmente maior do que deveria estar neste estágio atual de desenvolvimento das tecnologias.
De um lado, temos várias pessoas, impulsionadas por projeção midiática, criando moedas digitais ou tokens, sendo que muitas delas não passam de golpistas. Existem muitos conflitos de interesse, egoísmo e negócios obscuros. Poucas pessoas na mídia (menos ainda no Brasil), nos setores de finanças, tecnologia, nas universidades, nos governos entendem o que de fato está acontecendo. A grande verdade é que pouca gente que está comprando Bitcoin ou outros ativos digitais entendem o que está acontecendo. Por fim, asseguro-lhes, que nem mesmo eu possivelmente entenda o que está acontecendo.
Além disso, é importante deixar claro que os bancos e governos não irão desaparecer por causa da tecnologia do Bitcoin. Tampouco deixarão de existir os programas de computador (software) tradicionais.
Resumindo: existe muito oba-oba no momento. Mas também existem sinais importantes que nos dizem muita coisa. Para encontrá-los e entendê-los, precisamos começar definindo o que é uma criptomoeda.
Definição: criptomoedas são uma nova classe de ativo que possibilitam aplicações descentralizadas.
Se essa definição for realmente verdadeira, sua visão sobre criptomoedas tem pouco a ver com o que você pensa sobre elas em relação às moedas tradicionais e valores mobiliários e tudo a ver com a sua opinião sobre aplicações descentralizadas e o valor delas em relação aos modelos atuais de softwares. Se você não tem uma opinião sobre aplicações descentralizadas, você não pode ter uma opinião sobre criptomoedas ainda.
E como essa discussão não deve ser levada a cabo como uma disputa entre as criptomoedas e as moedas fiduciárias tradicionais, precisamos parar de chamar o Bitcoin de moeda. Isso é um título falso. Não podemos comparar o Bitcoin ao dólar, real, euro ou qualquer outra moeda estatal. Essa comparação não vai lhe ajudar a entender o que está realmente acontecendo. Na verdade, essa comparação é uma pedra no caminho para o entendimento. Por isso, passarei a chamar as criptomoedas de cripto ativos.
Logo, por definição, cripto ativos são uma nova classe de ativo que possibilitam aplicações descentralizadas.
E como qualquer outra classe de ativo, os cripto ativos existem como um mecanismo para alocar recursos para uma forma específica de organização. Eles não existem, como muitos pensam, somente para serem negociados em corretoras.
Para entender o que quero dizer, vamos pensar em outras classes de ativos e qual forma de organização elas servem. Por exemplo, ações de uma empresa servem a uma empresa, títulos do governo servem a nações, estados e municípios, hipotecas servem a proprietários de terra e, seguindo esse raciocínio, os cripto ativos servem a aplicações descentralizadas.
Aplicações descentralizadas são uma nova forma de organização e uma nova forma de software. Elas representam um novo modelo para criar, financiar e operar serviços de software em uma maneira descentralizada, de cima para baixo. Tudo isso não as fazem melhor ou pior que os modelos de software atuais ou as empresas que os criam. O que posso garantir é que os cripto ativos são radicalmente diferentes dos programas de computador que conhecemos e radicalmente diferentes das formas de organização as quais estamos acostumados.
Mas, afinal, o que é uma aplicação descentralizada?
É uma forma de criar um serviço que nenhuma entidade, empresa ou seja lá o que for, possa operá-lo.
A primeira aplicação descentralizada da história surgiu em 2008 e foi uma aplicação criada com o foco em pagamentos eletrônicos. Se você pensou no Bitcoin, acertou.
Como ele funciona? Como é possível enviar um pagamento eletrônico sem a necessidade de uma contraparte que irá rastrear o pagamento e atualizar o saldo de cada uma das partes envolvidas? Informação digital não é um instrumento ao portador. Informação digital precisa de intermediação e validação para ser confiada.
O artigo técnico de Satoshi Nakamoto que criou o Bitcoin soluciona essa questão ao formar uma rede de computadores ponto-a-ponto (peer-to-peer), que é pública e que anuncia a todos os participantes da rede toda e qualquer transação realizada. Criptograficamente, essas transações são assinadas com a mesma chave que está ligada ao fundos de origem da transação para que assim tenhamos a certeza de que os fundos pertencem a quem de fato está realizando aquela transação.
Mas apenas isso não basta. Era preciso criar uma maneira de assegurar que ninguém fosse capaz de gastar o mesmo saldo duas vezes. Uma solução para isso poderia ter sido designar uma contraparte para carimbar essas transações e apenas aceitar a primeira delas. Contudo, estaríamos de volta à estaca zero, pois estaríamos confiando em um intermediário. A grande solução revolucionária foi criar uma competição digital para que as contrapartes disputassem essa tarefa de ser o verificador da transação. Não podemos evitar a necessidade de termos um ente verificador. Contudo, podemos evitar designá-lo de antemão ou usar o mesmo verificador para todos os blocos de transações a serem verificados.
Mas para que exista competição entre os verificadores das transações, é preciso que exista um incentivo, um ativo. Eis que surge o Bitcoin, que nada mais é que um prêmio pago aos verificadores que garantem a integridade da aplicação descentralizada de pagamentos. Os verificadores das transações foram chamados de mineradores. Vale lembrar que qualquer um pode fazer parte desta competição, pois a rede é aberta, assim como o seu código.
E como funciona essa competição entre os mineradores? Basicamente, esses mineradores (leia-se computadores) participam de uma corrida cujo objetivo é encontrar um número aleatório gerado pela rede. Porém, encontrar este número é muito, muito difícil. Por isso, é necessário utilizar uma quantidade colossal de poder de processamento e queimar muita energia elétrica para participar dessa competição.
Mineração de Bitcoin
Por que criar uma competição elaborada e cara (pois, necessita-se computadores com muito poder de processamento e alta quantidade de energia elétrica) para simplesmente verificar transações para uma rede?
Porque assim haverá a certeza de que os competidores incorreram em um custo financeiro real para participar. Desta maneira, se eles vencerem a corrida para encontrar o número aleatório e se tornarem o verificador designado para um bloco de transações, eles não irão usar aquele poder para o mal (como censurar as transações, por exemplo). Ao invés disso, eles irão meticulosamente analisar cada transação pendente, eliminar qualquer tentativa dos usuários de gastar o mesmo saldo duas vezes, garantir que todas as regras foram seguidas e anunciar as transações validadas para o restante da rede.
Ou seja, a rede está programada para recompensar com novos Bitcoins aqueles que sigam as regras, e também recompensar com taxas de transações, também recebidas em Bitcoin, que serão pagas aos mineradores por aqueles que enviam as transações.
Em outras palavras: os mineradores seguem as regras porque fazer a coisa certa é parte do seu auto-interesse econômico.
E como estes mineradores possuem contas para pagar decorrentes do seu trabalho de verificação de transação, eles geralmente vendem os Bitcoins que recebem como recompensa em troca de moedas fiduciárias que eles precisam obter para fazer frente aos seus compromissos. Qualquer coisa que sobrar, é lucro. E é assim que os Bitcoins entram em circulação. As pessoas que precisam podem comprá-lo, assim como podem comprá-los quem quer apenas especular sobre o preço do ativo.
Assim, com apenas uma cajadada, mata-se dois coelhos: a recompensa financeira aos mineradores elimina a necessidade de confiarmos em uma terceira parte centralizada e tal recompensa entra no mercado como um instrumento digital ao portador que funciona em uma rede de pagamentos eletrônicos que não possui um controlador.
É assim que funciona o Bitcoin, a primeira aplicação descentralizada criada pela humanidade. Ou seja, uma aplicação descentralizada nos permite fazer algo que já fazemos hoje em dia (pagamentos eletrônicos, nesse caso), porém sem a necessidade de uma autoridade central.
Depois do Bitcoin, outras aplicações descentralizadas começaram a surgir. Quem sabe, logo, logo teremos uma aplicativo de compartilhamento de carona descentralizado (BitUber?) ou um aplicativo de compartilhamento de acomodação descentralizado (Bitbnb?)... Uma nova forma de organização que não exige a existência de uma companhia por trás.
Vamos recapitular: nos últimos anos, o mundo inventou uma maneira de criar serviços de software que não possuem um operador centralizado. Estes serviços são chamados de aplicações descentralizadas que são possibilitadas com cripto ativos que incentivam entidades na internet a contribuir recursos necessários (processamento, armazenamento, computação) para que o serviço funcione.
Tem muita gente que pensa que este modelo será o futuro de todos os softwares. Mas eu não penso assim, pois temos um problema. Não está completamente claro ainda se aplicações descentralizadas são realmente úteis para a maioria das pessoas em relação aos softwares tradicionais.
Não podemos dizer que o Bitcoin é melhor que o PayPal para todas as pessoas. Na verdade, em quase todas dimensões, serviços descentralizados são piores que seus pares centralizados, pois eles são mais lentos, mais caros, menos escaláveis, mais difíceis de serem utilizados pelos consumidores, além de uma governança incerta e volátil. E isso não tem nada que ver com o fato de esta tecnologia ser incipiente. Isso não vai fundamentalmente mudar com avanços tecnológicos nestas aplicações descentralizadas. Isso porque, existem compromissos estruturais que resultam diretamente do objetivo principal desses serviços, sob a qual todos os outros objetivos devem estar subordinados para que eles sejam relevantes. Estou falando da descentralização.
Sabe aquela elaborada e cara competição que descrevi acima? Bem, ela vem com um custo de desempenho. Lembra como os usuários precisam assinar criptograficamente as transações? Pois, estas chaves privadas precisam ser armazenadas de uma forma muito mais segura que uma simples senha que pode ser recuperada. Lembra do fato de que nenhuma entidade central opera a rede? O outro lado da moeda é que não existe uma forma fácil de chegar a uma consenso sobre alguma mudança na governança da rede.
Por isso, não podemos descrever o Bitcoin como um "PayPal descentralizado". Seria mais honesto dizer que o Bitcoin é uma rede de pagamentos eletrônicos extremamente ineficiente, mas que em contrapartida é descentralizada.
Em resumo: aplicações centralizadas são muito mais eficientes que aplicações descentralizadas em praticamente todas as dimensões. Exceto por uma dimensão: resistência à censura. Isso significa que aplicações descentralizadas são abertas e sem restrições. As transações nestes serviços descentralizados são imparáveis.
Nada pode me impedir de enviar Bitcoin a qualquer pessoa que eu queira, desde que eu tenha uma conexão de internet e pague as taxas de transação da rede, eu sou livre para fazer o que eu quiser.
Portanto, enquanto não podemos dizer que para todo mundo o Bitcoin é melhor que a Visa, é possível que para algum grupo de usuários o Bitcoin é verdadeiramente a única maneira de se fazer um pagamento.
Quem prefere um sistema de pagamento resistente à censura em detrimento à velocidade, custo, escalabilidade e os benefícios de usabilidade dos serviços centralizados?
Apesar de não haver muita estatística sobre isso, os verdadeiros usuários de aplicações descentralizadas parecem recair sob duas categorias:
- Pessoas que estão em países que o acesso a serviços centralizados é limitado, mas que existe acesso a Internet.
- Pessoas que não querem utilizar serviços centralizados por algum motivo, ou seja, que não querem que suas transações sejam censuradas ou conhecidas.
Por enquanto, a maioria das aplicações descentralizadas existente possui pouco uso em relação ao serviços tradicionais. Se pensarmos no Bitcoin, atualmente, menos empresas pelo mundo aceitam o ativo como meio de pagamento que comparado ao ano de 2014, por exemplo. Ao mesmo tempo, é evidente o uso do Bitcoin na dark web e para pagamentos de resgates decorrentes de sequestro de dados (ransomware).
Mas, então, alguém vai perguntar: as pessoas não estão usando o Bitcoin como uma reserva de valor? Claro que sim, mas isso é apenas uma forma de dizer que as pessoas estão investindo no Bitcoin com uma visão de longo prazo. Mas tenha em mente que não estou falando sobre investir em um cripto ativo ou especular sobre seu preço. Estou falando sobre se existem pessoas que enxergam utilidade em uma aplicação descentralizada para pagamentos. O mercado imobiliário, por exemplo, é uma boa forma de reserva de valor a longo prazo, desde que pessoas vivam ou trabalhem naquele imóvel. O mesmo raciocínio é válido para as aplicações descentralizadas. Elas só farão sentido como investimento de longo prazo, se houver algum uso para elas.
E aí vem a pergunta: será que as pessoas irão realmente utilizar aplicações descentralizadas? Será que elas se tornarão uma parte importante da economia? É difícil prever isso, pois isso depende em parte da evolução da tecnologia, mas depende muito mais da reação da sociedade em relação a elas.
E este é basicamente o argumento que os operadores de mercado tradicionais fazem em relação aos cripto ativos, que é muito cedo para dizer qualquer coisa, que é uma profunda mudança de paradigma e que se alguma dessas aplicações descentralizadas que surgiram se tornarem parte integral do mundo, o cripto ativo que estiver associado a ela irá ser extremamente valioso.
A longo prazo, o valor de um cripto ativo é derivado do uso da aplicação descentralizada que ele possibilita. Apesar de ainda ser cedo, o alto valor de mercado dos cripto ativos são justificados porque mesmo que a probabilidade de adoção em massa seja pequena, o impacto será muito grande, por isso muitos apostam e pagam para ver o que vai realmente acontecer.
Então, como explicar a recente mania em relação aos cripto ativos? O preço do Bitcoin, por exemplo, subiu 5 vezes em 2017. O preço do Ethereum subiu 30 vezes. Como em toda mania, atualmente é racional ser irracional.
Se você investiu em Bitcoin ou Ethereum nos primórdios, você agora está sob uma montanha de dinheiro e às vezes dá a sensação de que você está brincando com dinheiro daquele jogo banco imobiliário. Você se sente esperto e mais propenso a tomar risco em comparação se fosse o seu dinheiro fiduciário que você ganhou trabalhando. Você até diversificaria um pouco e tentaria comprar o próximo grande cripto ativo.
Se você não investiu, o medo de perder a chance (FOMO, fear-of-missing-out) vai crescendo até você comprar e chegar ao momento do "me ferrei", caso o cripto ativo comece a cair. O grande problema é que as pessoas estão comprando cripto ativos sem entendê-los a fundo. As pessoas estão investindo apenas em coisas que não conseguem entender e isso geralmente vem ocorrendo quando o preço de um cripto ativo bate seu recorde histórico. E isso não é bom porque haverá gente querendo vender cripto ativos especialmente para essas pessoas que decidiram que nunca irão entender do que se tratam as aplicações descentralizadas e que irão colocar apostar em coisas que soem como complexas e impressionantes.
Estes vendedores de cripto ativos a que me refiro não são pessoas que possuem patrimônio em cripto e que por algum motivo decidem vendê-lo. Refiro-me às pessoas que criam um cripto ativo, geralmente por meio de uma oferta inicial de cripto ativo (ICO, na sigla em inglês).
O modelo que vem se tornando clássico é pré-vender um percentual do ativo que a rede proposta irá gerar como uma forma de financiar o desenvolvimento da aplicação descentralizada antes mesmo que ela seja lançada. Os fundadores do projeto tendem a ficar como um percentual desses ativos, o que significa que levantar capital para um projeto como este implica em dinheiro que não pode ser diluído, pois não é uma ação, e também não implica na criação de dívida, pois o fundador nunca precisará pagar isso de volta. Isso é basicamente dinheiro grátis. Nunca foi tão bom para os empreendedores, nem mesmo na bolha das empresas de internet nos anos 90.
A ideia propagada por aqueles que lançam ICOs é de que vender os ativos aos usuários antes mesmo de a rede ser lançada ajuda a criar uma legião de "evangelistas" que serão usuários iniciais e promotores da aplicação que não existiriam caso não houvesse um incentivo financeiro para que eles participassem na comunidade. O problema com esta linha de pensamento é que se confunde investidores iniciais com usuários iniciais. A interseção de quem compra o cripto ativo e de quem realmente quer utilizar o serviço é provavelmente muito, muito pequena, especialmente durante momentos de mania de mercado como este que vem ocorrendo. Sim, as pessoas estão comprando o cripto ativo, mas isso porque o "mercado", na verdade, é representado pelas pessoas que querem ficar ricas e o produto/serviço vendido é "uma forma de enriquecer".
O mercado total de cripto ativos tem crescido significativamente nos últimos anos. Qual será o tamanho dele daqui a alguns anos? Certamente, muitas ou a maioria dos cripto ativos que está sendo lançado atualmente não sobreviverá. Tampouco sobreviveu a maioria dos cripto ativos lançados em 2013 e 2014, quando eram chamados de "altcoins".
Portanto, em resumo, a conclusão é que os cripto ativos são uma nova classe de ativos que possibilitam aplicações descentralizadas. Estas, por sua vez, possibilitam que serviços que atualmente são prestados por entes centralizados possam existir de forma descentralizada, sem o controle de nenhum governo ou empresa. Este modelo de software é útil para pessoas que precisam de resistência à censura, que geralmente são pessoas alijadas do sistema tradicional ou pessoas que querem estar fora do sistema tradicional. A maioria das pessoas fora desses dois grupos está melhor servida por aplicações centralizadas que são muitas vezes melhores em praticamente todas as dimensões, pelo menos por enquanto. A aceitação ou rejeição social em relação a uma nova tecnologia é difícil de ser prevista. No longo prazo, o valor de um cripto ativo subirá e cairá proporcionalmente ao uso possibilitado pela aplicação descentralizada. No curto prazo, haverá extrema volatilidade, pois a maioria das pessoas que compra cripto ativos não entendem o que estão comprando. A maioria dos proponentes de ICOs não está construindo aplicações descentralizadas e, sim, estão capitalizando sobre a confusão criada pela mania de mercado.
Não aposte na derrocada do mercado de cripto ativos e aplicações descentralizadas. Nos aproximamos da primeira década de existência do Bitcoin e é evidente que ele não irá desaparecer e que algumas aplicações descentralizadas poderão encontrar o seu lugar ao sol, ou melhor dizendo, sua utilidade social.