Tenho escrito muito aqui sobre os problemas que, ao meu ver, mais afetam quem está chegando agora no mundo das finanças, principalmente sob a ótica do que considero uma educação financeira crítica. Isto é, que se detém nas contradições, falhas e limites impostos pelo próprio sistema financeiro, além das várias formas pela qual pessoas e empresas podem tentar tirar vantagem da falta de conhecimento de quem ainda não sabe muito sobre o tema.
Não foram poucas as vezes em que me deparei com propagandas que prometiam, além de ganhos fora do comum, a famigerada consistência. Engraçado, visto que apesar da cornucópia de supostas soluções para atingi-la, é muito difícil ver alguém definindo o que ela realmente significa ou como atestá-la de forma concreta. Nos dois casos, isso favorece bastante quem vende: se não dizem em momento algum o que estão oferecendo, como dizer que não entregaram o que foi prometido?
Deixando de lado essa questão de como definir e avaliar a consistência, gostaria de tratar aqui de uma questão igualmente relevante, que é o modo como essas pessoas insistem sem parar na ideia de que o “problema” a ser solucionado é sempre de ordem individual. Quer dizer, não é que existe um problema de ordem técnica, de gestão de risco, dos resultados buscados ou da pura e simples falsidade das promessas feitas. O problema é você.
Não me refiro aqui ao aspecto psicológico do investimento, apesar de que em muitos casos ele é muito mais o sintoma da falta de formação adequada, que a indústria predatória da educação financeira adora fomentar. Me refiro aqui ao modo como se constrói uma separação dentro do campo da análise financeira em geral, e na análise técnica, minha área de especialidade, em particular.
Trata-se da separação entre um conhecimento “técnico” e a capacidade individual de aplicar esse conhecimento de forma efetiva nos mercados financeiros. Dessa separação, aprofunda-se a ideia segundo a qual não basta “saber”, mas “ser” alguém capaz de utilizar esse conhecimento. O sistema operacional se torna, assim, algo atrelado aos julgamentos subjetivos de quem o executa, o que implica numa série de problemas para quem estuda e uma série de vantagens para quem vende cursos.
O principal deles é que isso abre a porta para uma estranha relação, na qual não basta aprender o que é ensinado, que é a parte mundana, pública e corriqueira da análise técnica. Há incontáveis recursos para aprender conceitos básicos e avançados de análise técnica, que compõe o grosso de basicamente qualquer curso pago sobre o tema. O diferencial, segundo quem lucra com esses cursos, é com quem se está aprendendo, porque o que vai te fazer ganhar dinheiro “de verdade” é a capacidade de ver o que está oculto no mercado, razão pela qual os seus resultados ainda não são iguais aos dessas pessoas, embora em tese a técnica seja a mesma.
A relação mago-aprendiz
Essa separação entre o mundano e o divino se manifesta de muitas formas, mas todas elas passam pela metáfora de uma relação entre mago e aprendiz, de quem foi e quem não foi iniciado/a nas artes místicas. Isto porque a aplicação do mesmo conhecimento, no caso um sistema de análise técnica, não produz os mesmos resultados e a razão dada para isso é simplesmente que os/as aprendizes ainda não estão prontos/as. Não é a mistura das poções que gera o efeito desejado, mas quem as mistura; a questão não é como dizer as palavras mágicas, mas quem quem as fala.
Na prática do mercado financeiro, essa relação é extremamente negativa, porque mantém quem estuda uma determinada forma de analisar mercados numa relação de perpétua dependência dos julgamentos subjetivos de uma pessoa ou, na melhor das hipóteses, dos seus próprios julgamentos subjetivos. Equivale então, a dizer que o aspecto técnico da análise é secundário ao aspecto humano, é apenas o instrumento pela qual a mágica individual pode ser canalizada.
No caso da relação de dependência dos julgamentos subjetivos de outra pessoa, um dos grandes problemas é que ela sempre terá uma razão para explicar porque você não está tendo resultados como os que ela promete: não tem tempo de mercado como ela, não notou algo no gráfico, deixou um lote passar despercebido, enfim. Entretanto, isso mudará conforme você passa mais tempo (e gasta mais dinheiro) para se aproximar do/a mestre/a, lhe propiciando acesso às leis “ocultas” do mercado.
No caso de quem “se torna” esse/a mestre/a, temos ainda um grande problema, que é justamente acreditar que exista alguma mágica no mercado financeiro e ceder aos vieses mentais, que validam sua atuação independente dos resultados ruins que, em geral, são inevitáveis com esse tipo de abordagem subjetivista. A análise técnica, de um ponto de vista crítico, só funciona quando é largamente objetiva em seu funcionamento, o que significa que – como em qualquer campo de estudo minimamente sério – qualquer pessoa deve ser capaz de reproduzir o funcionamento de um sistema ou experimento estatístico, nesse caso.
Armadilhas do subjetivismo: ondas de Elliott e Fibonacci
Vou me deter no exemplo de um curso promovido por um portal de notícias mantido por uma das maiores corretoras do país, inicialmente gratuito. Aparentemente, a razão para resultados inconsistentes utilizando a contagem de ondas de Elliott é porque você não está sabendo conta-las. Um grande alívio, visto que se o problema é você, basta criar um produto que te ensine a fazer isso corretamente. O mesmo vale para a utilização das retrações de Fibonacci.
Tratam-se de duas ferramentas pelas quais eu nutro grande receio. A teoria das ondas de Elliott postula, em essência, que o mercado se move em ondas e que existe uma ordem nesse processo, da qual podemos nos fazer valer para comprar ou vender em momentos oportunos. Toda tendência começa com uma primeira onda de impulso, seguida de uma segunda onda (correção) e uma terceira onda de impulso, que é sempre maior que a primeira, uma quarta onda de correção e uma quinta onda de impulso, seguida de consolidações.
Entretanto, a ideia de um ordenamento que precede a estrutura do mercado é frágil demais para ser levada a sério. Sem entrar em detalhes e considerando apenas um tempo gráfico, quem é capaz de dizer quando uma onda terminou e outra começou, visto que tudo depende da capacidade de identificar uma “verdadeira” onda inicial? E as ondas menores dentro dela, são ou não são ondas relevantes? E se a onda 3 for uma onda 5 de outra onda que aconteceu há mais tempo?
Não por menos, há um ditado popular entre analistas, que diz que se você pedir 20 especialistas em Elliot para contarem as ondas de um mesmo gráfico, terá 20 resultados diferentes. O processo é altamente subjetivo e se adapta fácil demais as circunstâncias para ter qualquer validade. Contudo, é um prato cheio para quem quer te vender um curso sobre o tema: não basta contar as ondas, nem contar elas da forma que alguma outra pessoa te ensinou, você precisa contar elas da forma como aquela pessoa ensina a contar.
As retrações de Fibonacci, que em teoria mostram pontos onde o preço tende a terminar um movimento contrário e voltar a caminhar no sentido do movimento principal. Para isso, traça-se uma proporção que marca a mínima e a máxima, que é dividida em quatro pontos principais, aproximadamente 23%, 38% e 61% do tamanho do movimento principal, além de 50% que não é um número de Fibonacci mas representa o ponto central.
Bom, há algumas razões que fazem parecer com que essa ferramenta tenha um poder preditivo que, na realidade, não tem. Primeiramente, se o utilizamos em movimentos menores, como é comum entre quem faz day trade, é muito improvável que o preço não interaja com esses níveis, pelo simples fato de que a volatilidade (grau de imprevisibilidade do mercado) faça com que isso aconteça.
Segundo, porque tal como nas ondas de Elliott, é extremamente fácil moldar a ferramenta para explicar qualquer resultado obtido, seja ele favorável ou desfavorável. Como não há um critério fixo para o quanto será a margem de erro, não importa se o preço passa longe, perto ou exatamente em cima de um dos níveis, que de resto não tem nenhuma relação causal com as flutuações de preço – e se a insistência é justamente na precisão dos pontos, porque tanta tolerância com suas falhas?
Terceiro, e talvez mais importante, quando o preço efetivamente realiza uma retração seguida de uma retomada do movimento principal, ele dificilmente anda mais que 60% no sentido contrário ao movimento anterior antes de uma nova onda de oferta ou demanda empurrá-lo de volta para o sentido original. Isso significa que não tem qualquer relação com a proporção de Fibonacci, embora possa parecer que sim, especialmente quando queremos que esse seja o caso.
Tanto é que algumas pessoas seguem adicionando níveis, fazendo com que o movimento inteiro seja marcado por níveis “especiais”, o que na prática significa que sempre que houver uma retração e retomada, haverá um nível com o qual preço interagiu e que, pela visão do retrovisor, havia anunciado uma oportunidade de compra ou venda – o que, na verdade, é simplesmente um engano cognitivo.
Todos esses pontos servem para dizer que, em síntese, nenhuma das duas ferramentas é objetivamente funcional – e sei que muita gente vai me crucificar por dizer isso. Entretanto, elas são extremamente úteis na medida em que permitem explorar a oposição entre conhecimento técnico e místico: quem detém o saber místico está constantemente dizendo porque aqueles/as que não o detém não conseguem os resultados que, em tese, eles/as conseguem.
Mais uma vez, não é a repetição dos fatores visíveis que produz tais resultados, mas dos fatores subjetivos, individuais e que, segundo as pessoas que vendem esses segredos, você só conseguirá aprendê-los com elas. Tudo isso, não preciso dizer, é uma grande bobagem. Não tenho nada contra o misticismo e suas derivantes, mas não quando ele é instrumentalizado para enganar pessoas, dissimular o campo da análise técnica e criar verdadeiras seitas, no pior sentido da palavra. É hora de expurgarmos o misticismo e subjetivismo, para tratar das coisas com o devido rigor.
Análise técnica e o fator humano
Embora vendedores/as de curso insistam no contrário, a análise técnica não depende do fator humano. O que quero dizer com isso é que um sistema de análise técnica não pode ser majoritariamente subjetivo ou, para usar o termo mais comum, discricionário. Isto é, não pode ser baseado num conjunto de regras que não sejam objetivamente replicáveis por qualquer pessoa. Talvez por ter passado muito tempo trabalhando com pesquisa científica, isso seja um pouco mais claro para mim, mas deixem-me ilustrar.
Se eu adiciono uma média móvel simples de 20 períodos no gráfico diário de um ativo, todas as pessoas que fizerem o mesmo verão a mesma média móvel se os valores da cotação forem os mesmos. Entretanto, se eu digo que vou identificar em qual onda de Elliott estamos, abre-se uma multidão de possibilidades e essa definição será largamente subjetiva, visto que cada pessoa pode identificar isso de uma forma a depender de onde comece sua contagem.
Logo, se o meu sistema envolve comprar assim que o preço fechar acima da média de 20 períodos, absolutamente qualquer pessoa que for capaz de identificar esses dois fatores será capaz de executar esse sistema, embora com variações decorrentes da liquidez (podem não conseguir entrar todas no mesmo ponto). Inclusive, sem necessidade alguma de que eu ou qualquer outra pessoa defina algo por elas.
Por outro lado, se o sistema envolve identificar em qual onda estamos e quando ela pode ter terminado, temos duas possibilidades: ou a pessoa “se torna” mestra de si mesma para identificar esses pontos (gerando lucro apesar desses fatores) ou ela recorre a um/a mestre/a que faça isso por ela. Em outras palavras, tal “sistema” não só repousa largamente sobre julgamentos subjetivos, como ele é propenso a criar “subjetividades mágicas”, no sentido de que o resultado está atrelado a pessoa que o executa, o que corre no sentido oposto ao da análise técnica.
A consistência de um sistema técnico depende de dois fatores. O primeiro deles é a consistência do próprio sistema: diante de um fenômeno caótico (o preço), as variáveis (regras) do sistema devem permanecer as mesmas para que possamos, então, avaliar sua performance no tempo, que é justamente o segundo fator. Isto é, precisamos executar o sistema exaustivamente durante um período longo para, então, determinarmos o que é um resultado consistente com o sistema e o que é um resultado que não é consistente com a performance histórica do sistema.
Não é possível fazer isso se usamos um sistema total ou parcialmente discricionário/subjetivo, como o que mencionei acima usando ondas de Elliott, tendo em vista que que as tomadas de decisão não têm um referencial externo. Logo, não há como saber se os ganhos ou perdas tem relação com o sistema ou com a sorte, com a análise ou o acaso. Isto, claro, considerando uma longa série de operações. Se não há consistência metodológica, não há como haver consistência empírica de resultados.
Análise técnica e educação financeira crítica
A construção de um sistema de análise funcional e lucrativo a longo prazo é uma tarefa complexa, o que explica a razão pela qual pouquíssimas pessoas estão dispostas a compartilhá-las com o público em geral, especialmente em salas ao vivo. Infelizmente, em mais uma tática de manutenção da assimetria de informação, omitem esse fato porque é muito mais vendável oferecer a ideia de que basta aprender algumas técnicas e consumir religiosamente o conteúdo produzido por alguém.
Precisamos de um caminho alternativo e que, diga-se de passagem, não passa pela disponibilização dos próprios sistemas, algo que provavelmente serviria apenas para substituir a indústria predatória de cursos para uma indústria predatória de sistemas operacionais. Do ponto de vista de uma educação financeira crítica, o ensino da análise técnica passa pelo ensino das ferramentas, da gestão de capital, dos limites concretos do que pode ser feito, de um entendimento dinâmico do risco.
Em outras palavras, visaria formar analistas que são, ao mesmo tempo, desenvolvedores/as de sistemas que são rigorosamente metodológicos e objetivos. Trata-se de uma formação muito mais complexa e aprofundada, visto que passa pela análise do mercado e dos resultados da própria análise, excluindo dela o fator humano ou discriminando, tão claramente quanto possível, onde termina a análise técnica e começa a análise subjetiva, discricionária. Gostaria, nesse sentido, de lembrar que isso não é algo que está restrito a profissionais do mercado financeiro e do acesso à tecnologia de ponta.
Pelo contrário, acredito que seja perfeitamente possível formar pessoas comuns para exercer essa atividade em contexto, digamos, doméstico. Isso, claro, a nível individual, visto que gerenciar um capital coletivo (como um fundo) não apenas envolve outras habilidades, além de acesso a serviços de um outro patamar, como também adequação a uma série de regulamentos que salvaguardam quem investe seu dinheiro nesse tipo de empreendimento.
Entretanto, a maior parte das pessoas que se tornam alvo do marketing predatório de oportunistas da análise técnica só estão interessadas em aprender a operar, inicialmente, por conta própria. Temos, enquanto educadores/as financeiros/as, a obrigação de ensinar essas pessoas a fazerem isso da forma correta, especialmente porque há muita gente sem seriedade fazendo isso e prejudicando, em muitos casos de forma permanente, as finanças dessas pessoas. Na semana que vem, tentarei trazer aqui minha visão sobre como uma educação como essa pode ser estruturada.
Contato: afsalmeron@gmail.com