A Medida Provisória 1.175, conhecida como a MP dos Carros Populares saiu no último dia 05/06/2023. Em vez das costumeiras isenções de IPI dadas pelo Governo Federal, a bola da vez foi o desconto patrocinado.
Pelo texto da MP, trata-se de um desconto que será concedido pela montadora do veículo que, por sua vez, depois da venda vai conseguir apurar créditos fiscais de PIS/Cofins, no valor do desconto concedido.
Para veículos leves de até R$ 120 mil, esse desconto pode variar de R$ 2 mil a R$ 8 mil. Essa variação se dá em função de uma série de critérios organizados pela MP, que fazem uma espécie de corrida por pontos. Na prática, esses critérios podem somar de 65 a 100 pontos na hora da venda do carro. Assim, quanto mais perto de 65 pontos, mais perto o desconto vai ficar de R$ 2 mil. E quanto mais perto de 100 pontos, mais perto o desconto vai ficar de R$ 8 mil.
O primeiro critério é o combustível. Aqui, carros com etanol, híbridos e elétricos saem na vantagem. O segundo é a eficiência energética. Se beber muito, já sabe: vai ganhar menos pontos. O terceiro critério é o preço, quanto mais barato, mais pontos ganha. E, por último, ganha mais pontos aqueles carros cujas partes forem produzidas no Mercosul.
Para veículos pesados, os critérios são diferentes. O valor do desconto vai de R$ 33,6 mil até R$99,4 mil e vai variar de acordo com a destinação (transporte de passageiros ou de carga) e capacidade de carga do veículo. Mas a principal diferença, aqui, é que para adquirir um veículo pesado, o consumidor vai ter que dar na troca um outro veículo pesado, que tenha mais de 20 anos de idade.
Ao todo foram disponibilizados R$ 1,5 bilhão para o programa, sendo R$ 500 milhões para veículos leves e R$ 1 bilhão para pesados (divididos entre veículos de carga e de passageiros). Bem como, a duração prevista do incentivo foi de 120 dias, contados da publicação da MP.
Se você está pensando que R$ 500 milhões para carros leves não parece muito dinheiro, você está certo. De fato, não é muito. Com base no n° mensal de emplacamentos dos top 10 players do mercado (90% do market share), podemos estabelecer que cada carro vendido terá um desconto de R$ 3 mil (sendo SUPER conservador). Como 7/10 deles tem um ticket médio abaixo de R$ 150 mil, a maior parte deles estarão aptos para um possível desconto.
Ao fazer essa relação, a estimativa conservadora é que essa medida, efetivamente, durará menos de 2 meses (metade do prazo do governo). Isso porque ela deverá atingir a venda de uns 160 mil veículos leves. Mas uma coisa não está sendo levada em consideração, ainda.
Nesse número de emplacamentos mensais entram na conta, também, os carros comprados por locadoras de veículos. E isso nos leva à pergunta do mês: será que as locadoras vão conseguir se beneficiar desse desconto?
Para a gente responder essa pergunta e entender direitinho a minha interpretação da MP 1.175, a gente vai ter que analisar alguns artigos e entender alguns conceitos legais. Mas é coisa fácil e rápida.
Começando pelos artigos, os primeiros dois mais importantes são o 3º e o 5º:
Reparou que destaquei a palavra consumidor nos dois? Fiz isso porque essa palavra nos diz muita coisa. Afinal, consumidor tem um conceito jurídico que foi definido pelo Código de Defesa do Consumidor em 1990, em seu art. 2°: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”
Mas o que seria destinatário final?
Bom, isso já foi definido também, há um tempo, pelos tribunais e pela doutrina jurídica. Basicamente, o destinatário final é quem consome o bem para uso próprio, sem que ele seja usado no fomento de atividade comercial ou empresarial. Inclusive, o STJ já decidiu várias vezes sobre isso.
No julgamento de um Recurso Especial amplamente divulgado (Resp 1.162.649), ficou bem claro esse conceito. No caso, um restaurante que comprou um ar-condicionado, para ser utilizado em benefício dos clientes, não foi considerado destinatário final do bem. No julgado, o STJ definiu que não é destinatário final a PJ que busca a utilização do bem na sua cadeia produtiva, para agregar valor ao produto ou serviço que produz ou explora.
Entendeu o conceito? Se sim, basta transportar o exemplo acima para as locadoras de veículos.
Se a PJ consumidora/destinatária final é aquela que compra o produto, mas não o utiliza para agregar valor ao serviço que explora, a locadora de veículos, quando compra um carro seria consumidora?
A resposta é uma obviedade: não!
Quando uma locadora de veículos, leves ou pesados, compra um veículo, ela não passa nem perto de ser consumidora ou destinatária final desse veículo comprado, já que faz parte da atividade econômica explorada por ela usar os veículos para ganhar dinheiro.
Ou seja, a montadora pode até vender o veículo com desconto para uma locadora. Mas as chances de ela não conseguir apurar crédito fiscal com base nessa venda são gigantes. Eu diria 99%, mas deixo aquele 1%, por conta das surpresas que o judiciário sempre pode nos causar.
Repare que a palavra consumidor é citada em 8 artigos, dos 24 que a MP tem. Ou seja, um terço da MP fala em consumidor. Mas um deles, em específico, vai além e ressalta o conceito ao falar de consumidor final, que é o art. 15.
É esse artigo que determina os requisitos que as montadoras precisarão cumprir para conseguirem apurar crédito fiscal. Dá uma olhada no destaque do inciso II:
Esse inciso, basicamente, serve como o último prego no caixão, para encerrar o assunto de vez.
Mas a gente sabe que o leitor mais curioso pode ter lido a MP e visto lá no artigo 11 (abaixo), que outros grupos poderão aproveitar o benefício, depois de quinze dias, reservados para pessoas físicas, no caso de veículos leves. A gente sabe também que você deve estar pensando que esse artigo joga por terra tudo que falamos aqui.
Mas ele não joga!
O que o art. 11 quis dizer é que nos primeiros 15 dias, os consumidores pequenos vão ter preferência. Após isso, os médios e os grandes também poderão aproveitar o benefício, mas desde que sejam consumidores, é claro.
A questão é: quem são esses consumidores médios e grandes?
É simples. São aquelas empresas que compram os veículos, mas não os utilizam para agregar valor à atividade desenvolvida. São as empresas que querem comprar frota própria, para uso interno, de seus funcionários. Por exemplo, a Vale (VALE3 (BVMF:VALE3)), que usa carros leves como um benefício interno para seus funcionários ou para movimentar esses funcionários dentro das próprias minas.
“Ahh! Não valeria mais a pena alugar?” — perguntaria o mais atento.
Sim! Até antes da MP valia mais a pena alugar. Porém, pode ser que, caso não haja uma revisão de preços dos aluguéis, passe a valer mais a pena para o potencial cliente — que assinaria um contrato de aluguel por agora —, comprar a própria frota de carros populares para aproveitar o desconto.
Mas é bom lembrar que o prazo da MP é curto e a cota do incentivo é pequena, ao passo que os contratos de locação de frota são longos e têm um ciclo maior do que a duração do benefício governamental.
O impacto negativo mais provável talvez aconteça na depreciação das frotas de Localiza (BVMF:RENT3) e Movida (BVMF:MOVI3). O motivo é que a venda de carros novos mais baratos pode impactar negativamente no preço dos seminovos. E isso levaria a um aumento da depreciação empregada pelas empresas em sua frota.
Inclusive, na última sexta-feira, a Localiza soltou um Fato Relevante falando que pode ter um impacto negativo de R$ 575 milhões a R$ 650 milhões nos resultados do segundo trimestre por causa disso.
Ou seja, o que estava sendo visto como um benefício que poderia ser aproveitado pelas locadoras, na verdade pode ter virado uma pedrada na testa delas.
Primeiro, porque não devem conseguir comprar veículos barateados pelo desconto patrocinado da MP. Segundo, porque uma queda no preço dos novos, mesmo que temporária, pode afetar o preço dos seminovos, o que vai obrigar as locadoras a rever o valor de sua frota.
Nesse mesmo Fato Relevante (trecho em destaque abaixo), a Localiza falou sobre a possibilidade de comprar esses carros com desconto, o que diminuiria o CAPEX destinado a crescimento.
Mas na humilde opinião, a interpretação dada por eles está equivocada. Como a gente viu, ela não deve conseguir carros com o desconto da MP. Afinal, é improvável que um terço da MP falasse em consumidor final se o objetivo dela não fosse, de fato, vender com desconto apenas para o consumidor final.
Sem contar que o que manda no CAPEX da empresa é a diferença entre os carros comprados em um período e os carros vendidos no mesmo período. Se ela comprar carros mais baratos, vai vender carros mais baratos também. Logo, o CAPEX diminuiria somente se a queda nos preços de carros novos e seminovos fosse desproporcional (caíssem menos os preços dos seminovos).
É fato que algumas montadoras estão oferecendo um desconto em cima do desconto do governo, por conta própria. Agora, se esse desconto extra vai chegar nas locadoras, por enquanto não dá para saber.
Tudo indica que o governo cumpriu o prometido, ao limitar o benefício ao consumidor final e jogar o carro popular para baixo de R$ 60 mil (Kwid, é de você que estou falando). Resta saber se ele vai conseguir fomentar as vendas de automóveis de forma efetiva, uma vez que o carro mais barato ainda custa 45 salários-mínimos, após os descontos.
Em tempos de crédito caro, tenho minhas dúvidas.